Isso é o que acontece com o segundo estágio do homem de “conhecer seu Senhor conhecendo a si mesmo”. Agora nos voltamos para o terceiro e último dos três estágios distinguidos acima.
Vamos começar citando uma breve descrição do terceiro estágio feita pelo próprio Ibn Arabi.
Após esses dois estágios, vem a “revelação” final. Lá, nossas próprias formas serão vistas nele (ou seja, no Absoluto) de tal forma que todos nós seremos revelados uns aos outros no Absoluto. Todos nós nos reconheceremos e, ao mesmo tempo, seremos distinguidos uns dos outros.
O significado dessa afirmação um tanto enigmática pode se tornar perfeitamente compreensível da seguinte maneira. Para o olho de um homem que atingiu esse estágio espiritual, surge uma cena de extraordinária beleza. Ele vê todas as coisas existentes como elas aparecem no espelho do Absoluto e como elas aparecem umas nas outras. Todas essas coisas fluem e se interpenetram de tal forma que se tornam transparentes umas para as outras, mantendo, ao mesmo tempo, cada uma sua própria individualidade. Essa é a experiência do “desvelamento” (kashf).
A esse respeito, podemos observar que al-Qashani divide a “revelação” em dois estágios.
A primeira “revelação” ocorre no estado de “autoaniquilação” (fana) no Absoluto. Nesse estado, o homem que vê e o objeto visto não são nada além do Absoluto unicamente. Isso é chamado de unificação (jam). A segunda “revelação” é a “subsistência” (baqa) após a “auto-aniquilação”. Nesse estado espiritual, as formas do mundo criado aparecem; elas aparecem uma para a outra no próprio Absoluto. Assim, a Realidade aqui desempenha o papel de um espelho para as criaturas. E o Ser Único se diversifica em muitos por meio das inúmeras formas das coisas. A realidade (do espelho) é o Absoluto e as formas (que aparecem nele) são as criaturas. As criaturas nessa experiência conhecem umas às outras e, ainda assim, cada uma se distingue das outras.
Al-Qashani continua dizendo que, dentre aqueles cujos olhos foram abertos pela segunda “revelação”, alguns atingem o estado de “perfeição” (kamal). Esses são homens “que não são velados pela visão das criaturas do Absoluto e que reconhecem as muitas criaturas no próprio seio da Unidade real do Absoluto”. Essas são as “pessoas de perfeição” (ahl al-kamal) cujos olhos não são velados pela Majestade Divina (ou seja, o aspecto dos Muitos fenomenais) da Beleza Divina (ou seja, o aspecto do Um metafísico), nem pela Beleza Divina da Majestade Divina. O último ponto é mencionado com ênfase especial em vista do fato de que, de acordo com a interpretação de al-Qashan, a primeira “revelação” consiste exclusivamente em uma experiência de Beleza (jamal), enquanto a segunda é principalmente uma experiência de Majestade (jalal), de modo que, em ambos os casos, há um certo perigo de os místicos enfatizarem exclusivamente um ou outro.
A primeira “revelação” traz à tona apenas a Beleza. O sujeito que o experimenta não testemunha nada além da Beleza… Assim, ele é naturalmente velado pela Beleza e não pode ver a Majestade.
Mas entre aqueles que experimentam a segunda ‘revelação’, há alguns que são velados pela Majestade e não conseguem ver a Beleza. Eles tendem a imaginar e representar o (estado de coisas) nesse nível em termos de criaturas, distinguindo-as do Absoluto, e, assim, são impedidos pela visão das criaturas de ver o Absoluto.
A mesma situação é descrita de uma maneira diferente pelo próprio Ibn Arabi em uma expressão concisa, como segue:
Alguns de nós (ou seja, o ‘povo da perfeição’) estão cientes de que esse conhecimento (supremo) sobre nós (ou seja, sobre os Muitos fenomenais) ocorre em ninguém menos que o Absoluto. Mas alguns de nós (isto é, os místicos que não são tão perfeitos) não estão cientes da (verdadeira natureza dessa) Presença (isto é, o nível ontológico que é revelado em baqa – experiência) na qual esse conhecimento sobre nós (isto é, sobre os Muitos fenomenais) ocorre para nós. Eu me refugio em Deus para não ser um dos ignorantes!
Para concluir, vamos resumir neste ponto a interpretação dada por Ibn Arabi à Tradição: “Aquele que conhece a si mesmo conhece seu Senhor”.
Ele começa enfatizando que o autoconhecimento do homem é a premissa absolutamente necessária para que ele conheça seu Senhor, que o conhecimento que o homem tem do Senhor só pode resultar do conhecimento que ele tem de si mesmo.
O que é importante aqui é que a palavra “Senhor” (rabb), na terminologia de Ibn Arabi, significa o Absoluto, conforme ele se manifesta por meio de algum Nome definido. Ela não se refere à Essência que ultrapassa todas as determinações e transcende todas as relações. Assim, o ditado: “Aquele que conhece a si mesmo conhece seu Senhor” não sugere, de forma alguma, que o autoconhecimento do homem permitirá que ele conheça o Absoluto em sua Essência pura. Seja o que for que se faça, e por mais profunda que seja a experiência de “revelação”, a pessoa é forçada a parar no estágio do “Senhor”. Aqui reside a limitação imposta à cognição humana.
Na direção oposta, entretanto, a mesma cognição humana é capaz de cobrir um campo incrivelmente amplo em seu esforço para conhecer o Absoluto. Pois, afinal de contas, o Absoluto que se revela por si mesmo é, no último e derradeiro estágio de sua atividade, nada mais que o mundo em que vivemos. E ‘cada parte do mundo’ é um indicador de seu próprio fundamento ontológico, que é o seu Senhor.” Além disso, o homem é a mais perfeita de todas as partes do mundo. Se essa parte mais perfeita do mundo vier a conhecer a si mesma por meio do autoconhecimento ou da autoconsciência, ela será naturalmente capaz de conhecer o Absoluto até o limite máximo da possibilidade, na medida em que este se manifesta no mundo.
Parece que ainda resta uma questão vital: O homem é realmente capaz de conhecer a si mesmo com tamanha profundidade? Essa, no entanto, é uma questão relativa. Se considerarmos a frase “conhecer a si mesmo” no sentido mais rigoroso, a resposta será negativa, mas se a considerarmos em um sentido mais amplo, a resposta será afirmativa. Como diz Ibn Arabi, “Você está certo se disser Sim e está certo se disser Não”.