A segunda parte do livro [Al-insan al-kamil] trata da cosmologia e, mais precisamente, da cosmologia metafísica, uma vez que as realidades cósmicas sempre serão levadas de volta aos seus princípios divinos.
Essa parte começa com uma descrição dos graus de manifestação principial, cujos suportes imediatos são as realidades ilimitadas do mundo informal. Seus nomes, quase todos retirados do Alcorão, simbolizam “moradas” ou “estações” da Divindade, como os “Baldaquins Supremos” (ar-rafraf al-a’lâ), a “Leito de Repouso” (as-sarîr), os “Dois Pés e Duas Sandálias” (ar-rijlayn wa an-na’layn), o “Trono” (al-‘arsh), o “Pedestal” (al-kursî) e a “Árvore de Lótus do Limite Extremo” (sidrat al-muntahâ). Todos eles são espelhos da irradiação divina total.
Sua hierarquia é diferenciada em virtude da polarização sucessiva em princípios ativos e passivos: aquilo que é passivo em relação ao grau mais alto é, por sua vez, ativo em relação àquilo que domina. Essa polaridade é particularmente explícita na relação entre o “Cálamo Supremo” (al-qalam al-a’lâ) e a “Tábua Protegida” (al-lûh al-mahfûz), uma vez que o Cálamo inscreve a Ciência divina do universo na Tábua, que, por sua vez, é o protótipo imutável do devir1.
Agora, o suporte cósmico primário das manifestações divinas, assim como seu agente eterno, não é outro senão o Espírito (ar-rûh), que é tanto criado quanto incriado, já que representa o mediador entre Deus e o universo2. Jîlî dá à “face” incriada do Espírito o nome de Espírito Santo (ar-rûh al-quds); enquanto ele chama o Espírito como a primeira criatura de “o Anjo chamado Espírito” (al-malak al-musammâ bir-rûh).
O Espírito é refratado em seis faculdades de conhecimento que têm sua sede no homem, mas cujas essências são cósmicas e angélicas, de modo que representam, em suas realidades não individuais, tantas faculdades do Homem universal; são elas: o coração, o intelecto, a faculdade conjectural, a força de decisão, o pensamento e a imaginação.
Entre estas faculdades, o coração (al-qalb) é central, porque é o “lugar” onde as Realidades transcendentes entram em contato com o homem; é o órgão da intuição e da revelação divina (at-tajalli).
O intelecto primário (al-‘aql al-awwal) é essencialmente identificado com o Espírito e, portanto, com o coração; no entanto, seu reflexo no homem é, de certa forma, complementar ao coração: pode-se dizer que o coração revela a Presença divina em seu aspecto de “ser”, enquanto o intelecto — ou seja, a refração cósmica do intelecto primário — a revela em seu aspecto de “ciência”. De acordo com um simbolismo planetário que Jîlî explicará mais tarde, o coração é solar; ele corresponde ao centro luminoso do universo, enquanto o intelecto corresponde à esfera planetária mais distante, a de Saturno, que engloba as outras.
A palavra al-wahm designa a faculdade conjectural, a imaginação ativa ou o poder da ilusão, que representa o poder cósmico mais formidável que o homem recebeu como empréstimo, porque manifesta a tendência demiúrgica que atrai todas as possibilidades ainda não esgotadas.
Al-himmah, por outro lado, significa a faculdade de ascensão espiritual, a aspiração do homem em direção ao essencial e sua força de decisão, sua vontade de se libertar.
O pensamento (al-fikr) é uma forma de conhecimento indireto. As imperfeições do pensamento estão em seus “ramos”, não em sua “raiz”, que toca as possibilidades mais elevadas do homem. O pensamento — particularmente a meditação (tafakkur) — pode ser uma “chave” para o conhecimento espiritual.
A sexta faculdade descrita no livro de Jîlî é a imaginação (al-khayâl), cujo papel é relativamente passivo em contraste com o da faculdade conjectural (al-wahm); de fato, al-khayâl é como a matéria plástica da mente, de modo que essa faculdade corresponde analogamente à materia prima do mundo das formas.
Colocamos uma certa ênfase nesses capítulos sobre as faculdades da alma, porque há uma verdadeira psicologia espiritual aqui, ou seja, uma ciência da alma em relação aos seus contatos com o mundo do Espírito. É também nesse sentido que devemos entender a escolha das faculdades descritas, entre as quais estão ausentes as faculdades da sensação e da ação, enquanto a vontade é considerada apenas em sua exaltação espiritual, como himmah3.
Todas essas faculdades têm suas “fontes” perpétuas na “Forma Maometana” (aç-çûrat al-muhammadiyah), o germe da Luz divina a partir do qual o paraíso e o inferno foram criados. É aqui que Jîlî descreve os estados paradisíaco e infernal, que não são realmente eternos ((A eternidade absoluta pertence somente a Deus.), pois tudo acabará sendo reintegrado a Deus.
Todas as tendências subversivas têm seu apoio na psique (an-nafs), que é a raiz da individualização e, de certa forma, se opõe ao Espírito (ar-rûh). Entretanto, ela tem seu protótipo universal e inalterável na “Forma Maometana”.
Veja sobre esse assunto: Frithjof Schuon. L’Œil du Cœur (coleção Mystiques et Religions. Ed. Dervy-Livres. Paris), capítulo En-Nûr, e Du Soufisme, página 46 ↩
O simbolismo planetário ao qual aludimos nos permite situar essas faculdades em uma hierarquia visual: O coração corresponde ao sol, cuja posição é, de qualquer forma, central em relação aos outros planetas, qualquer que seja o sistema astronômico adotado; o intelecto corresponde à esfera de Saturno, a vontade espiritual à de Júpiter, a faculdade conjectural à de Marte, a imaginação à de Vênus, o pensamento à de Mercúrio. À Lua, Jîlî atribui o espírito vital, também chamado de rûh. Observe as posições antinômicas, de acordo com a ordem geocêntrica dos planetas, de alhimmah e al-fikr, bem como de al-wahm e al-khayâl ↩