Guénon Cristo

René Guénon — CRISTO
SÍMBOLOS DA CIÊNCIA SAGRADA
-Por certo, a expressão “Coração de Cristo”, nesse caso, deve ser tomada num sentido que não é precisamente aquele que poderíamos denominar sentido “histórico”. Todavia, deve-se observar ainda que os fatos históricos em si, como tudo mais, traduzem, de acordo com seu modo próprio, realidades superiores e conformam-se à lei de correspondência que acabamos de referir, lei que, por si só, permite explicar certas “prefigurações”. Trata-se, poderíamos dizer, do Cristo-Princípio, isto é, do Verbo manifestado no ponto central do Universo. E quem ousaria sustentar que o Verbo Eterno e sua manifestação histórica, terrestre e humana, não são, real e substancialmente, um único Cristo sob dois aspectos diferentes? Tocamos aqui, ainda, nas relações do temporal e do intemporal, mas talvez não conviesse insistir mais sobre isso, pois trata-se justamente de coisas que só o simbolismo permite exprimir, na medida em que são expressáveis. Em todo caso, basta saber ler os símbolos para descobrir tudo o que nós próprios encontramos. Mas, por infelicidade, especialmente em nossa época, ninguém mais sabe ler os símbolos.

-Não devemos esquecer de mencionar em caráter complementar que, em resposta à questão Who doth that G denote? (who e não mais what como antes, quando se tratava da Geometria), o catecismo contém ainda a seguinte frase: The Grand Architect and contriver of the Universe, or He that was taken up to the Pinnacle of the Holy Temple; pode-se notar que o “Grande Arquiteto do Universo” está identificado a Cristo (portanto ao Logos), por sua vez relacionado ao simbolismo da “pedra angular”, entendida de acordo com o que já explicamos (cap. 43); o “pináculo do Templo” (e podemos notar a curiosa semelhança da palavra “pináculo” com o hebreu pinnah, que significa “ângulo”) é naturalmente o topo ou o ponto mais elevado, e, como tal, equivale à “chave de abóbada” (Keystone) Arch Masonry.

Cristo também, como o Jano antigo, leva o cetro real a que tem direito em nome de seu Pai do Céu e de seus ancestrais neste mundo; e sua outra mão segura a chave dos segredos eternos, a chave tingida pelo seu sangue, que abriu, para a humanidade perdida, a porta da vida. É por isso que, na quarta das grandes antífonas anteriores ao Natal, a liturgia sagrada o aclama assim: ‘O Clavis David, et Sceptrum domus Israeli… Vós sóis, ó Cristo esperado, a Chave de Davi e o Cetro da casa de Israel. Vós abris, e ninguém pode fechar; e quando vós fechais ninguém mais saberia abrir…’ ”

-Por essas poucas considerações já é fácil compreender que Jano representa verdadeiramente Aquele que é, não só o “Senhor do tríplice tempo” (designação que é de igual modo aplicada a Shiva na doutrina hindu), mas também, e antes de tudo, o “Senhor da Eternidade”. Cristo, escrevia ainda a esse respeito o sr. Charbonneau-Lassay, domina o passado e o futuro; coeterno com seu Pai, é como ele o “Ancestral dos Dias”: “No princípio era o verbo”, diz São João. Ele é também o pai e o senhor dos séculos vindouros: Jesu pater futuri saeculi, repete diariamente a Igreja Romana, e Ele próprio se proclama o começo e o final de tudo: “Eu sou o alfa e o ômega, o princípio e o fim”. “É o ‘Senhor da Eternidade’.”

-De acordo com o simbolismo empregado pela Cabala hebraica, à direita e à esquerda correspondem respectivamente dois atributos divinos: a Misericórdia (Hesed) e a Justiça (Din), que também cabem de forma clara a Cristo, em especial quando o consideramos em seu papel de Juiz dos vivos e dos mortos.

-De fato, se o tigre ou o leopardo é um dos símbolos do Set egípcio, a serpente é outro, o que podemos compreender sem dificuldade se a encaramos sob seu aspecto maléfico, que lhe é mais comumente atribuído. Mas quase sempre se esquece que a serpente tem ainda um aspecto benéfico, que se encontra de igual modo no simbolismo do antigo Egito, em especial sob a forma de serpente real, “uraeus” ou basilisco. Mesmo na iconografia cristã, a serpente é às vezes um símbolo de Cristo. E o Set bíblico, cujo papel assinalamos também na lenda do Graal, é muitas vezes considerado como uma “prefiguração” de Cristo. Podemos dizer que os dois Set nada mais são, no fundo, que as duas serpentes do caduceu hermético: são, se o quisermos, a vida e a morte, ambas produzidas por um poder único em sua essência, mas duplo em sua manifestação.

-Quando o peixe é tomado como símbolo de Cristo, seu nome grego, Ichthus, é considerado como formado pelas iniciais das palavras Iêsous Christos Theou Uios Sóter (Jesus Cristo, de Deus Filho, Salvador).

-Como Vishnu na Índia, e também sob a forma de peixe, o Oannes caldeu, que alguns consideraram de modo categórico como uma representação de Cristo, ensina igualmente aos homens a doutrina primordial; trata-se de um exemplo admirável da unidade que existe entre tradições muito diferentes na aparência, e que permaneceria inexplicável se não admitíssemos suas ligações com uma fonte comum.

-A isso se liga a designação de Cristo como “germe” em diversos textos da Escritura, que retomaremos talvez numa outra ocasião…

-É muito significativo, sob esse ponto de vista, que os hermetistas cristãos falem de Cristo como sendo a verdadeira “pedra filosofal”, com a mesma frequência que se referem a ele como “pedra angular”.

-Observe-se a relação existente entre a unção da pedra por Jacó, bem como a dos reis para a sua sagração, e o caráter de Cristo ou do Messias, que é o “Ungido” por excelência (Khristós, no grego, e Mashiah, no hebraico, significam “ungido”)

-Na concepção cristã do sacrifício, Cristo é também ao mesmo tempo a vítima e o sacerdote por excelência.


René Guénon