Passamos agora a uma das características mais interessantes da teoria da criação, peculiar a Ibn Arabi. Essa parte de sua teoria é historicamente de importância primordial porque é uma crítica à filosofia atomística dos teólogos ash’aritas.
Já vimos, em conexão com outro problema, que, na visão de mundo de Ibn Arabi, a automanifestação do Absoluto é um processo perpétuo cujos estágios principais — (1) a “emanação santíssima”, (2) a “emanação sagrada” e, em seguida, (3) o surgimento de coisas individuais concretas — continuam sendo atualizados um após o outro como ondas sucessivas e recorrentes. Esse processo ontológico se repete indefinidamente e sem fim. A todo momento, e momento após momento, o mesmo processo eterno de aniquilação e recriação é repetido. Neste exato momento, um número infinito de coisas e propriedades passa a existir e, no momento seguinte, elas são aniquiladas para serem substituídas por outra infinidade de coisas e propriedades.
Portanto, não podemos experimentar o mesmo mundo duas vezes em dois momentos diferentes. O mundo que realmente experimentamos está em fluxo perpétuo. Ele muda de momento a momento. Mas essa mudança contínua e perpétua ocorre de forma tão ordenada e de acordo com padrões tão definidos que nós, observadores superficiais, imaginamos que o mesmo mundo único está ao nosso redor.
Descrevendo esse fluxo perpétuo de coisas em termos do conceito de “criação”, que é o tópico central deste capítulo, Ibn Arabi diz que o mundo continua sendo criado de novo a cada momento. Ele chama isso de “nova criação” (al-khalq al-jadid). A expressão não deve ser tomada no sentido de uma “nova” criação a ser contrastada com a “antiga”, ou seja, a criação anterior do mundo. A palavra “novo” (jadid) nesse contexto significa “sempre novo” ou “que é renovado de momento a momento”. A “nova criação” significa, em resumo, o processo de criação eterno e sempre novo.
O homem, sendo dotado de autoconsciência, pode ter uma sensação real e viva dessa “nova criação” tanto dentro quanto fora de si mesmo, ou seja, tanto em sua mente quanto em seu corpo, tornando-se consciente de si mesmo, que continua mudando de momento a momento sem nunca parar enquanto ele viver. Entretanto, as pessoas comuns não estão conscientes do processo de “nova criação”, nem mesmo com relação a si mesmas.
Ibn Arabi descreve esse processo também como uma “ascensão perpétua” (taraqqi da’im). Esse é um ponto muito importante no qual podemos examinar a própria base de sua ideia de “nova criação”.
A maravilha de todas as maravilhas é que o homem (e, consequentemente, tudo) está em um processo perpétuo de ascensão. E, no entanto, (normalmente) ele não está ciente disso por causa da extrema finura e delicadeza do véu19 ou por causa da extrema semelhança entre (as formas sucessivas).
O fato de tudo estar envolvido no processo da sempre nova criação significa principalmente que o Absoluto está continuamente se manifestando na infinidade de coisas “possíveis”. Isso é feito pela “descida” ontológica (nuzul) do Absoluto em direção aos níveis inferiores do Ser, primeiro aos arquétipos e depois ao “possível”. Mas o mesmo processo de “descida” perpétua, quando é observado do lado do “possível”, acaba sendo um processo perpétuo de “ascensão” ontológica. Tudo, nesse sentido, está perpetuamente “ascendendo” em direção ao Absoluto pela mesma “descida” deste último.
A “ascensão” (taraqqi) das coisas, em outras palavras, nada mais é do que o reverso da “descida” do Absoluto em direção a elas. As coisas no estado de não-existência que recebem a misericórdia do Absoluto e obtêm, assim, a existência, produzem, do ponto de vista dessas coisas, a imagem de sua “ascensão” em direção à fonte original da existência. Al-Qashani parafraseia a passagem citada acima da seguinte maneira:
Uma das coisas mais miraculosas sobre o homem é que ele está em um estado perpétuo de ascensão com relação aos modos de “preparação” de sua própria essência arquetípica. Pois todos os modos dos arquétipos são coisas que foram conhecidas por Deus (desde a eternidade), permanentemente fixadas em potencialidade, e Deus as traz à realidade incessante e perpetuamente. E assim Ele continua transformando as possibilidades (istidadat, lit. ‘preparações’) que existem desde o passado sem início e que são (portanto) essencialmente incriadas, em infinitas possibilidades que são de fato criadas.
Assim, tudo está em estado de ascensão neste exato momento, porque está perpetuamente recebendo as auto-manifestações ontológicas (wujudiyah) Divinas infinitamente renovadas e, a cada auto-manifestação, a coisa continua aumentando sua receptividade para outra (ou seja, a próxima) auto-manifestação.
O homem, entretanto, pode não estar consciente disso porque seus olhos estão velados, ou melhor, porque o véu é extremamente fino e delicado. Mas ele também pode se tornar consciente disso quando as automanifestações assumem a forma de experiências intelectuais, intuitivas, imaginativas ou místicas.
O conceito de “nova criação”, que compreende a “descida” e a “subida” ontológicas, é um ponto que revela mais claramente a natureza dinâmica da visão de mundo de Ibn Arabi. Nessa visão de mundo, nada permanece estático; o mundo, em sua totalidade, está em fervoroso movimento. O mundo se transforma caleidoscopicamente de momento a momento e, ainda assim, todos esses movimentos de autodesenvolvimento são os movimentos “ascendentes” das coisas em direção ao Um Absoluto, precisamente porque são as autoexpressões “descendentes” do Um Absoluto. Em um dos capítulos anteriores, que trata da coincidentia oppositorum, já consideramos o mesmo fenômeno de um ponto de vista diferente. Lá vimos como o Um é o Múltiplo e o Múltiplo é o Um. De fato, a “descida” e a “subida” descrevem exatamente a mesma coisa.