Jambet (SadraAE:63-64) – Ser é o nome do Real

Para examinar sistematicamente a doutrina sadriana do ser não é uma má ideia reconhecer suas teses fundamentais. Um texto é singularmente favorável a essa abordagem: o capítulo inaugural de Témoins de la Seigneurie divine, que constitui uma espécie de epítome da ontologia sadra. Esse texto é dividido em nove “iluminações”, e aqui está a primeira: “O ato de ser é a mais real das coisas em termos de efetivação real, porque o outro que não seja ele se torna realmente efetivado por ele. Consequentemente, o ato de ser é aquele pelo qual tudo o que possui uma realidade obtém sua realidade efetiva. Como, então, pode ser uma realidade abstrata, como afirmam aqueles que estão separados por um véu de seu testemunho evidente? Eis, com efeito, que ele é instaurado por essência, à exclusão do que se chama a quiddidade.” (Shawahid, p. 6)

Costuma-se traduzir o termo al-wujud como “ser” ou “existência”, e é verdade que o significado é bem representado por essas palavras se excluirmos a função copulativa do verbo “ser” e se concedermos a única função existencial1. Preferimos, na maioria das vezes, dizer “o ato de ser”, porque se se trata de ser, trata-se de ser na medida em que é um ato. Veremos, inclusive, que é um ato do imperativo, não o ato que atualiza o poder, mas a atualização desse ato, que sempre traz a marca do imperativo divino. O ato de ser se impõe a nós. Sem qualquer dúvida possível, ele é idêntico à realidade do que é real: al-wujud huwa al-haqiqa, o ato de ser, é a realidade efetiva, Sadra dirá com frequência. Assim, ele nos diz que o ato de ser é a mais real das coisas2. Tudo o que está sob o título de tahaqqoq, a efetivação de toda a realidade, depende, em última instância, do ato de ser. Tudo o que é diferente disso se torna efetivamente real. Tudo o que é diferente disso se torna efetivamente realizado, adquire uma haqiqa, uma realidade, por meio do ato de ser e somente por meio dele. Por outro lado, a ontologia não é uma filosofia “existencial”, mas uma doutrina da realidade e do real3.

SEGUE: Quididade e ato de ser


  1. Não retornaremos longamente ao problema apresentado por esse vocabulário do ser. A essência do problema é tratada na seção “O que é ser”), A essência do problema é tratada por Etienne Gilson, em L’Être et l’essence, Paris, 1948, e, no que diz respeito a Molla Sadra, por Henry Corbin, em sua introdução ao Livre des pénétrations métaphysiques, 2ª edição, Lagrasse, 1988, PP. 58-64). 58-64. 

  2. “O ato de ser em si é existente e as outras coisas, que não são o ato de ser, não são existentes por si mesmas, mas o são pelos atos de ser que lhes acontecem” (Asfâr, t. 1, p. 39). Consulte Le Livre des pénétrations métaphysiques (Kitâb al-mashâ’ir), 2ª edição, p. 91, Mafâtih al-ghayb, Teerã, 1363 h./ 1984, p. 321. 

  3. Não há nada em comum entre a ontologia sadriana e as filosofias da “existência”. A maior confusão reinou sobre esse ponto entre vários pensadores modernos em terras islâmicas, que procuraram aproximar Molla Sadra de Sartre ou até mesmo de Heidegger. Veja, por exemplo, Arparslan Açikgenç, Being and Existence in Sadra and Heidegger. A Comparative Ontology, Teerã, 1999 (em persa). 

Christian Jambet, Molla Sadra