Joseph Cary (JSB) – o camelo perdido (Rumi)

Joseph Cary — Sobre um poema de Rumi (JSB)

Você perdeu um camelo e a caravana está pronta para partir. Sua bagagem ficou espalhada pelo chão, ao passo que você, pálido de consternação, corre pelo que restou do acampamento, suplicando que lhe deem pistas, oferecendo uma recompensa. E a oportunidade do lucro rápido produz uma centena de respostas improvisadas: sim, um camelo avermelhado ia em direção ao pasto; não, ele tinha as orelhas aparadas e estava pastando ao pé da fonte; não, tinha um olho só e um chai-rel bordado; sim, estava coberto de sarna e não faz cinco minutos que passou por aqui. .. Mas você, que conhece o seu camelo, ainda que não saiba onde ele está, sabe que as pistas são falsas.

Parafraseio a história da busca do camelo de uma tradução do Mathnawi, feita pelo poeta persa do século XIII, Rumi. No poema, o buscador sabe precisamente o que perdeu e, portanto, até num estado de quase desespero, é capaz de distinguir corretamente entre o bom e o mau conselho. Sua história tem um desfecho feliz: acaba topando com alguém cuja descrição se ajusta aos seus conhecimentos, segue esse homem e encontra o camelo.

Mas o poema contém outra figura importante, uma figura mais ambiciosa do que os fornecedores de pistas falsas, visto que cobiça mais o próprio camelo do que a recompensa. Sua estratégia é simples: finge ter perdido o camelo perdido e, dessa maneira, ganha, pelo menos, sociedade no camelo quando este for encontrado. Arremeda, portanto, todas as palavras e gestos do verdadeiro buscador — a descoberta da perda, as lamentações e o arrancar dos cabelos, a corrida desenfreada pelo acampamento e as súplicas, a oferta do prêmio. Tomando por deixa a sinceridade apaixonada que vê diante de si, o falso buscador macaqueia a discriminação, rejeita o que é rejeitado, dá a impressão de que vai tentar outra vez, aceita afinal o que é aparentemente aceitável. O coração pulsa-lhe com mais força. Ali, perambulando pelo deserto à sua frente, está o camelo perdido.

A história do falso buscador culmina com a sua transformação. “Quando um mentiroso sai em companhia de um homem veraz, sua falsidade, subitamente, transmuda-se em verdade.” O impostor aprende que o caso que ele estivera imitando com o pensamento fito no lucro é, na verdade, o seu próprio caso. Ao executar os gestos provocados pela perda e pela busca autênticas, permite a si mesmo relembrar o que a cobiça, até então, lhe ocultara. Ele também perdeu um camelo. E acaba transformado num verdadeiro buscador.

Um comentário erudito a respeito do Mathnawi dá a entender que o poema de Rumi deriva de um dito atribuído ao profeta Maomé: “A sabedoria é o camelo perdido do crente.” A mim, no entanto, o que mais ME comove no poema é o que ele diz ao não-crente, àquele que não dá crédito à sua busca. O próprio poema termina com uma palavra de cautela, quase pesarosa, do poeta: “O assunto do meu discurso não são dois camelos; é um camelo só. A expressão verbal é limitada, o sentido a ser expresso é pleno.” Seja como for que eu interprete essa frase, torna-se claro, pelo menos, que o próprio Rumi tem dúvidas quanto aos seus meios de expressão (suas palavras) e à sua relação adequada com o “sentido”. Ele quis dizer mais do que pôde fazê-lo, e ME admoesta para que eu ME conserve atento.

E, quanto a mim, não confio nem no profeta Maomé nem no poeta Rumi, senão no poema que tenho diante dos olhos. Pode ser, como sugere a citação do Corão, que eu deva entender “sabedoria” onde leio “camelo”. Mas chegarei acaso a sentir pela sabedoria o que sinto pelo meu camelo, aquela besta de carga de quem tenho cuidado, que tenho amaldiçoado e com a qual tenho contado, trabalhado e vivido todos esses anos? Pode ser, como diz Rumi, que, afinal de contas, todos os camelos — seja qual for o seu significado — sejam um só. Mas o seu poema diz outra coisa: o meu camelo não é o seu. Como não haveria eu de conhecer o meu camelo de cor? Como haveria de ser enganado por pistas falsas? Perambulando pelo deserto à minha frente, conhecerei o meu camelo quando o encontrar. Já acredito reconhecer meu irmão — aquele que não dá crédito à sua busca — e meu coração põe-se a bater mais depressa. Quase acredito na minha perda.

Diz o poema, “você perdeu um camelo”, e fixa minha busca onde ela deve começar, aqui, debaixo dos meus pés, no chão onde a minha bagagem está esparramada e a caravana pronta para partir. Não é a verdade nem a sabedoria que conheço tão bem, que buscarei com tanta paixão. Não é por causa da verdade nem da sabedoria que imito de modo tão “expert” conhecimento e a paixão. Juro que posso viver hoje e amanhã sem a verdade e sem a sabedoria, como já vivi no passado. Mas sem o meu camelo sou um homem arruinado.

“Confia em Deus, mas amarra o teu camelo.” Provérbio persa.

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