Mas o próprio Utpaladeva destaca um segundo paradoxo relacionado ao seu próprio empreendimento. Pois afirma claramente, logo no início do tratado, que o Si-mesmo não pode ser demonstrado nem refutado:
Que Si consciente (ajaḍa) poderia produzir uma refutação ou uma demonstração (da existência) do agente (kartṛ), o sujeito conhecedor (jñātṛ), o Si sempre já estabelecido (ādisiddha), o Grande Senhor?
Abhinavagupta, em seu comentário, explica que o sujeito que tenta provar ou refutar a existência do Si é ou consciente ou inconsciente;
E um Si que é inconsciente (jaḍa), (em outras palavras,) que é incapaz de compreender, mesmo em relação a si mesmo (svātman), até mesmo uma migalha da liberdade da manifestação consciente (prakāśa), não tem o poder de demonstrar nem refutar nada, exatamente como uma pedra. Mas isso também não é possível para um Si consciente (ajaḍa). Pois essa (pessoa) pode, assim, produzir a demonstração do Si (somente) se o (Si a ser provado), que se manifesta a ela como novo (no momento da demonstração,) não se manifestou antes; (mas) se não há manifestação (desse Si antes de sua demonstração, então) ele deve ser inconsciente (antes dessa demonstração)! (Da mesma forma, essa pessoa) pode, portanto, produzir a refutação (do Si apenas) se o (Si cuja existência essa pessoa refuta) não se manifestar; e, portanto, deve ser inconsciente, e já foi dito que essa (refutação) é impossível por parte de um (ser) inconsciente; é igualmente impossível para um (ser) consciente. A manifestação de (objetos) como o pote, etc., nada mais é do que a manifestação da consciência, mas a (manifestação de objetos) não tem realidade independente (da consciência); e o Si é essa manifestação (da consciência). Portanto, assim como no caso da atividade dos ‘fatores de ação’ (kāraka) (que não podem ser aplicados ao Si), também não há atividade dos meios de conhecimento (pramāṇa) com relação ao (Si), porque esse (Si) envolve a automanifestação (svaprakāśatva), bem como a permanência (nityatva).
De acordo com os próprios princípios do Pratyabhijñā, o Si não pode ser demonstrado ou refutado. Ele escapa ao exame racional porque não pode constituir um objeto para o pramāṇa, o meio de conhecimento. A filosofia indiana, de fato, concebe o conhecimento de acordo com o modelo gramatical do kāraka, os “fatores de ação “. De acordo com esse modelo, assim como a ação (kriyā — cortar uma árvore, por exemplo) pressupõe um agente (kartṛ — um lenhador, por exemplo), mas também um objeto sobre o qual essa ação é exercida (karman — a árvore, por exemplo) e um instrumento de ação (karaṇa — o machado, por exemplo), da mesma forma, o conhecimento pressupõe um agente (pramātṛ), um objeto sobre o qual o ato de conhecimento é exercido (prameya) e um instrumento de conhecimento (pramāṇa).
O Si, entretanto, não pode ser um objeto para o pramāṇa, porque, como Abhinavagupta explica, o Si não é outro senão prakāśa. O último termo significa literalmente “luz”, mas em seu sentido filosófico designa luz consciente, ou seja, manifestação consciente, com tudo o que tal expressão implica em termos de ambiguidade: prakāśa é ao mesmo tempo o fato de que a consciência manifesta as coisas, o ato de manifestação ou iluminação pelo qual as coisas aparecem, e o fato de que elas são manifestadas. Agora, a manifestação manifestada (ou o fato de que as coisas são manifestadas) depende inteiramente da manifestação manifestante (ou o poder que a consciência tem de manifestar as coisas enquanto manifesta a si mesma), pois a consciência é svaprakāśa, “automanifestante”: como a luz, ela torna as coisas manifestas sem precisar, por sua vez, de outra fonte de luz para se tornar visível. Precisamente porque a consciência não é “iluminada” por alguma fonte extrínseca, mas ilumina a si mesma ao mesmo tempo que ilumina os objetos, nenhum meio de conhecimento pode tomá-la como seu objeto, pois ela é o próprio coração da subjetividade — que, por sua própria natureza, resiste a todas as formas de objetivação; nenhuma demonstração pode torná-la manifesta — pois ela é a fonte automanifestante e automanifestada de toda manifestação. É pelo fato de já estar sempre manifesto por si mesmo, “sempre já estabelecido” (ādisiddha), que, paradoxalmente, não pode ser nem estabelecido nem refutado. Pois o Pratyabhijñā considera, assim como os lógicos budistas que combate, que a própria natureza do pramāṇa é produzir novo conhecimento: um meio de conhecimento é válido se ele produz uma forma de conhecimento (jñāna), ou seja, se ele ME dá conhecimento do que eu não tinha conhecimento anteriormente. Mas o Si já está sempre aí, sempre já dado como o horizonte de toda a experiência, de modo que não pode ser nem refutado nem demonstrado: refutá-lo seria negar o fato da manifestação consciente, e somente um ser consciente, ou seja, aquele que já está experimentando essa manifestação, é capaz de refutá-lo; demonstrá-lo seria dar conhecimento do Si, fornecer novo conhecimento dele, mas é impossível dar conhecimento do Si, porque ele é sempre o fundamento já experimentado de todas as formas de experiência. É por isso que, explica Abhinavagupta, Utpaladeva deliberadamente escolheu não usar o termo jñāna (“cognição” ou “conhecimento”) para expressar nossa relação com o Si, mas sim pratyabhijñā, “reconhecimento”. Abhinavagupta, de fato, propõe essa análise semântica (nirvacana) do termo praty-abhi-jñā:
“O reconhecimento (praty-abhi-jñā) do Grande Senhor” é o re-(praty- = pratīpam) conhecimento (-jñā = jñāna), (ou seja,) manifestação (prakāśa) na presença (-abhi- = ābhimukhyena) do Si. (É um re(conhecimento, não mero conhecimento), pois a manifestação do Si não é (algo) que não existia antes, porque sua luz consciente nunca é interrompida. Entretanto, será explicado (no restante do tratado) que essa (manifestação do Si), graças ao próprio poder (do Si), aparece como interrompida, como artificial.