Ratié (IRSA:Intro:III.4) – o Si-mesmo não pode ser demonstrado nem refutado

Mas o próprio Utpaladeva destaca um segundo paradoxo relacionado ao seu próprio empreendimento. Pois afirma claramente, logo no início do tratado, que o Si-mesmo não pode ser demonstrado nem refutado:

Que Si consciente (ajaḍa) poderia produzir uma refutação ou uma demonstração [da existência] do agente (kartṛ), o sujeito conhecedor (jñātṛ), o Si sempre já estabelecido (ādisiddha), o Grande Senhor?

Abhinavagupta, em seu comentário, explica que o sujeito que tenta provar ou refutar a existência do Si é ou consciente ou inconsciente;

E um Si que é inconsciente (jaḍa), [em outras palavras,] que é incapaz de compreender, mesmo em relação a si mesmo (svātman), até mesmo uma migalha da liberdade da manifestação consciente (prakāśa), não tem o poder de demonstrar nem refutar nada, exatamente como uma pedra. Mas isso também não é possível para um Si consciente (ajaḍa). Pois essa [pessoa] pode, assim, produzir a demonstração do Si [somente] se o [Si a ser provado], que se manifesta a ela como novo [no momento da demonstração,] não se manifestou antes; [mas] se não há manifestação [desse Si antes de sua demonstração, então] ele deve ser inconsciente [antes dessa demonstração]! [Da mesma forma, essa pessoa] pode, portanto, produzir a refutação [do Si apenas] se o [Si cuja existência essa pessoa refuta] não se manifestar; e, portanto, deve ser inconsciente, e já foi dito que essa [refutação] é impossível por parte de um [ser] inconsciente; é igualmente impossível para um [ser] consciente. A manifestação de [objetos] como o pote, etc., nada mais é do que a manifestação da consciência, mas a [manifestação de objetos] não tem realidade independente [da consciência]; e o Si é essa manifestação [da consciência]. Portanto, assim como no caso da atividade dos ‘fatores de ação’ (kāraka) [que não podem ser aplicados ao Si], também não há atividade dos meios de conhecimento (pramāṇa) com relação ao [Si], porque esse [Si] envolve a automanifestação (svaprakāśatva), bem como a permanência (nityatva).

De acordo com os próprios princípios do Pratyabhijñā, o Si não pode ser demonstrado ou refutado. Ele escapa ao exame racional porque não pode constituir um objeto para o pramāṇa, o meio de conhecimento. A filosofia indiana, de fato, concebe o conhecimento de acordo com o modelo gramatical do kāraka, os “fatores de ação “. De acordo com esse modelo, assim como a ação (kriyā — cortar uma árvore, por exemplo) pressupõe um agente (kartṛ — um lenhador, por exemplo), mas também um objeto sobre o qual essa ação é exercida (karman — a árvore, por exemplo) e um instrumento de ação (karaṇa — o machado, por exemplo), da mesma forma, o conhecimento pressupõe um agente (pramātṛ), um objeto sobre o qual o ato de conhecimento é exercido (prameya) e um instrumento de conhecimento (pramāṇa).

O Si, entretanto, não pode ser um objeto para o pramāṇa, porque, como Abhinavagupta explica, o Si não é outro senão prakāśa. O último termo significa literalmente “luz”, mas em seu sentido filosófico designa luz consciente, ou seja, manifestação consciente, com tudo o que tal expressão implica em termos de ambiguidade: prakāśa é ao mesmo tempo o fato de que a consciência manifesta as coisas, o ato de manifestação ou iluminação pelo qual as coisas aparecem, e o fato de que elas são manifestadas. Agora, a manifestação manifestada (ou o fato de que as coisas são manifestadas) depende inteiramente da manifestação manifestante (ou o poder que a consciência tem de manifestar as coisas enquanto manifesta a si mesma), pois a consciência é svaprakāśa, “automanifestante”: como a luz, ela torna as coisas manifestas sem precisar, por sua vez, de outra fonte de luz para se tornar visível. Precisamente porque a consciência não é “iluminada” por alguma fonte extrínseca, mas ilumina a si mesma ao mesmo tempo que ilumina os objetos, nenhum meio de conhecimento pode tomá-la como seu objeto, pois ela é o próprio coração da subjetividade — que, por sua própria natureza, resiste a todas as formas de objetivação; nenhuma demonstração pode torná-la manifesta — pois ela é a fonte automanifestante e automanifestada de toda manifestação. É pelo fato de já estar sempre manifesto por si mesmo, “sempre já estabelecido” (ādisiddha), que, paradoxalmente, não pode ser nem estabelecido nem refutado. Pois o Pratyabhijñā considera, assim como os lógicos budistas que combate, que a própria natureza do pramāṇa é produzir novo conhecimento: um meio de conhecimento é válido se ele produz uma forma de conhecimento (jñāna), ou seja, se ele me dá conhecimento do que eu não tinha conhecimento anteriormente. Mas o Si já está sempre aí, sempre já dado como o horizonte de toda a experiência, de modo que não pode ser nem refutado nem demonstrado: refutá-lo seria negar o fato da manifestação consciente, e somente um ser consciente, ou seja, aquele que já está experimentando essa manifestação, é capaz de refutá-lo; demonstrá-lo seria dar conhecimento do Si, fornecer novo conhecimento dele, mas é impossível dar conhecimento do Si, porque ele é sempre o fundamento já experimentado de todas as formas de experiência. É por isso que, explica Abhinavagupta, Utpaladeva deliberadamente escolheu não usar o termo jñāna (“cognição” ou “conhecimento”) para expressar nossa relação com o Si, mas sim pratyabhijñā, “reconhecimento”. Abhinavagupta, de fato, propõe essa análise semântica (nirvacana) do termo praty-abhi-jñā:

“O reconhecimento (praty-abhi-jñā) do Grande Senhor” é o re-(praty- = pratīpam) conhecimento (-jñā = jñāna), [ou seja,] manifestação (prakāśa) na presença (-abhi- = ābhimukhyena) do Si. [É um re[conhecimento, não mero conhecimento], pois a manifestação do Si não é [algo] que não existia antes, porque sua luz consciente nunca é interrompida. Entretanto, será explicado [no restante do tratado] que essa [manifestação do Si], graças ao próprio poder [do Si], aparece como interrompida, como artificial.

Isabelle Ratié, Utpaladeva