VIDE: INFERNO
Pierre Gordon: IMAGEM DO MUNDO NA ANTIGUIDADE
Este mundo dito inferior porque se situava sob (infra) o céu da montanha ou no seio das águas se tornou ao longo do tempo os infernos: termo que nada teve de pejorativo, de início; os infernos foram ao contrário essencialmente, em seu princípio, um lugar de luz e um local divino; é aí que o neófito se preparava à vida sem fim; é aí que morria às pequenezas, às misérias, ao egoísmo, à ignorância, à impotência do universo fenomenal; é aí que um ser transcendente o digeria, a fim de transformá-lo em uma substância imortal. O mundo-de-sob-a-terra era por natureza um lugar de provas e de ascese. É sob este aspecto somente que acabou por aparecer quando o fervor iniciático baixou. Não se via mais nele senão uma estada do morto: esquecia-se que suas trevas conduziam à radiância. Quanto às personalidades iniciadoras que submetiam os noviços às disciplinas metamorfoseantes eles se tornaram demônios, seres atormentadores, se empenhando em torturar os homens; perdeu-se de vista seu caráter fundamental de benfeitoria; Kronos ele mesmo, o muito santo divinizador das eras passadas, se tornou uma entidade malévola, o Senhor da Morte, o sinistro wp-fr:Balor da Irlanda, o deus do «mau-olhado».
Esta degradação foi facilitada pelo fato que as individualidades sacrossantas do neolítico e dos primeiros tempos do bronze se revestiam frequentemente dos despojos de animais e que estas se tornaram em seguida máscaras sagradas: estes homens-animais se modificaram facilmente em demônios e em fantasmas (os pretas) do budismo. Na antiguidade, o Egito Antigo foi pouco a pouco o único a conservar, até o final, a tradição inicial, que tinha os seres disfarçados, por deuses ou personagens divinos.
Vemos que os infernos não foram de modo algum, em nenhum povo, uma elucubração da fantasia. Foi, como todo o resto, uma experiência religiosa, uma experiência vivente, saída do domínio ritual. Os infernos existiram autenticamente. Foram povoados por homens que suportaram um tempo de morte iniciática a fim de renascer à luz. Mais tarde, conforme à lei de concreção, deslizou-se da morte iniciática à morte orgânica, e os infernos se tornaram a estada dos falecidos. Mas é o mundo subterrâneo dos viventes que serviu de patrono, e os defuntos aí se fizeram admitir a fim de acceder à existência imortal que aí se obtinha dos viventes. Os infernos permaneceram o domínio da vida.