Em contextos igualmente indianos, islâmicos e cristãos, encontramos o pensamento de que somente Deus é, e que somente Ele pode dizer apropriadamente “eu”; como Meister Eckhart aponta, “”Ego”, a palavra “eu”, não é próprio de ninguém além de Deus em Sua própria individualidade” (Ed. Pfeiffer, p. 261), embora, de fato, “não temos meios de considerar o que Deus é, mas sim o que Ele não é” (São Tomás de Aquino, Summa Theologica I.3.1). Em outras palavras, essa é uma visão que tem sido defendida quase universalmente; e, portanto, pode-se dizer, talvez, que somente para o moderno e desinformado “homem da rua” a proposição “Sócrates é velho” implica que “Sócrates é”. Pelo contrário, para alguém que tenha sido ensinado, será evidente que a proposição nega um ser a “Sócrates”; pois ele estará ciente de que o que quer que seja agora velho, deve ter sido jovem e será mais velho, e que em nossa experiência, exclusivamente de passado e futuro, não há nenhum “agora” no qual possamos marcá-lo, para dizer que ele é isso ou aquilo. Esse homem, Sócrates, não pode ser encontrado em lugar algum.
Vimos que há uma ambiguidade de significado no predicamento, que pode ser entendido de forma diferente, por um lado, por um personalista e, por outro lado, por um positivista ou um filósofo tradicional. Até agora, concordo com o professor Urban, mas não posso concordar com sua análise da natureza da ambiguidade. Ele diz que Sócrates não é um ser persistente no sentido prático e fisiológico, mas que ele é persistente em seu aspecto moral e político. Mas certamente não é apenas nossa natureza física, mas também nossa natureza moral e política que é mutável; a alma não está sujeita à persuasão? Pelo menos na filosofia tradicional, a alma, tanto quanto o corpo, é uma coisa que se transforma, de acordo com o alimento que assimila (cf. Fedro 246C); ti etho, como diz Platão, nunca é constante em um indivíduo, enquanto o budista sustenta que é ainda mais perigoso identificar com o nosso Si [Self] a alma do que o corpo. “Sócrates é velho” não pode significar, em nenhum universo superior de discurso, que Sócrates “é”, mas, ao contrário, nega implicitamente que ele “é”.
Somente se predicarmos em “Sócrates” uma propriedade autenticamente constante, algo “absoluto”, “é” implicará em uma verdadeira essência. No entanto, nesse caso, teremos de perguntar: o que queremos dizer agora com “Sócrates”? Não podemos estar nos referindo a esse homem, Fulano de Tal, sujeito à velhice. Se dissermos que “Sócrates é infalível”, então estamos atribuindo um ser a “Sócrates”, porque a infalibilidade não é um atributo suscetível de mais ou menos, mas, como a “perfeição”, sem grau e, portanto, imutável. Isso será ainda mais evidente, talvez, se dissermos que “Sócrates é imortal”; pois isso é equivalente a dizer “eterno, imortal e o mesmo” (ousautos, Fédon 79D), e necessariamente significará que estamos nos referindo a um “Sócrates” que nunca nasceu. Ambas as proposições são como a de Aristóteles “o noûs nunca erra” (De anima III.10.433a).
A noção de uma infalibilidade atribuída a um indivíduo nos ofende com razão; a noção é irracional. Pois, de fato, como esse próprio homem, Sócrates, diz: “É a verdade que não podes contradizer; Sócrates, podes facilmente fazê-lo” (Banquete 201C, cf. Apologia 23A). Quando, então, “Sócrates” é infalível? Quando não é “ele mesmo” que fala, mas a “voz da Acrópole” (Timeu 70); isto é, a voz do Daimon imanente de Sócrates e de todo homem, “que não zela por nada além da verdade” e que é “um parente muito próximo meu, que vive na mesma casa que eu” (Hípias Maior 288D, 304D); em outras palavras, a parte divina e imortal de nossa alma (Timeu 73D, 90A) e nosso verdadeiro Si (Leis 959AB), a “Alma da alma” de Fílon (Heres 55), o pneuma como distinto da psique de São Paulo (Hebreus 4: 12) e o indiano “o Si-mesmo Imortal e Condutor do si-mesmo” indiano (Maitri Upanishad VI. 7 ). Assim, quando dizemos que Sócrates é infalível, “Sócrates” não é mais um nome para o homem que já foi jovem e que está sempre envelhecendo, mas um símbolo que representa o verdadeiro Si desse homem, o Si de todos os homens, que “nunca se torna alguém”. É o mesmo quando falamos da infalibilidade do Papa, ou seja, quando ele fala oracularmente (ex cathedra), e a referência não é a este ou àquele Papa, a Pio ou Gregório, mas ao Espírito Santo, cuja cathedra está no céu e que ensina de dentro do coração (Santo Agostinho, In ep. O que o Papa pode “saber” da Verdade como homem? Ele só pode acreditar; pois “Omne verum, a quocumque dicatur, est a Spiritu Sancto” (Santo Ambrósio em I Coríntios 12:3). “Papa”, como “infalível”, é um cargo, não um nome, e como tal é um símbolo que representa outra coisa que não “este homem”. “Não “eu”, o eu que sou, sei essas coisas, mas Deus em mim” (Jacob Boehme).
Agora, se Bertrand Russell afirma que o Espírito Santo não existe e que, consequentemente, minhas sentenças não têm sentido, eu concordarei com a primeira parte de sua proposição, uma vez que Deus é propriamente chamado de nada, ou seja, não é uma coisa entre outras; de fato, não se deve ignorar que, em proposições que atribuem o ser real ao seu sujeito, a forma do predicado é tipicamente negativa, uma vez que a negação implica a ausência de uma ou de todas as qualidades das quais pode haver mais ou menos. Mas não concordarei com sua segunda parte, exceto para dizer que, se minhas sentenças não têm sentido para ele, é porque seu universo de discurso não é idêntico ao meu; seu universo de discurso é apenas sobre coisas que nunca são as mesmas. Pode ser oportuno observar aqui que um hindu, mesmo no vernáculo, não diz que “estou com frio”, mas que “o frio adere a mim” (ham ko thanda lagta); onde a suposição é de que eu, meu Si, ainda precisa ser descoberto por um processo de remoção de todos os acidentes pelos quais meu ser está encoberto e dos quais devo me livrar se quiser ser autenticamente o que sou.
Resumindo, parece haver uma ambiguidade real no verbo “to be” que, como palavra inglesa, pode significar “to become” ou “to be”; e qual desses significados deve ser entendido em uma determinada proposição depende da natureza da qualidade ou propriedade atribuída ao sujeito da proposição; uma qualidade ou propriedade variável implica um sujeito variável, e vice-versa. Em alemão, poderíamos distinguir melhor entre ist geworden alt e ist unfehlbar, em grego entre presbus egeneto e estin athanatos, ou em sânscrito entre jirno babhuva e amrto’sti; onde os primeiros termos implicam processos, e os últimos, simples aspectos do ser. O fato de o inglês moderno não ter preservado (exceto na rara expressão “Woe worth”) o weorthan anglo-saxão (alemão werden, latim vertere, sânscrito vrt) representa uma perda real de poder expressivo. Há muitos outros casos, no “inglês comum” de hoje, em que palavras ou frases (ou, nesse caso, símbolos visuais ou de ação) perderam suas intenções primárias e mantêm apenas seus valores indicativos. Na medida em que esquecemos que “ilustrar” e “argumentar” implicam “lançar luz sobre” e “esclarecer”, ou que métier é etimologicamente ministerium, ou que o significado original de palavras como “natureza” (originalmente de coisas, mas agora denotando um agregado das próprias coisas), “arte” (agora usada para denotar um agregado de “obras de arte”), ou “inspiração” (agora muito comumente usada para significar “estimulante externo”) tenha de fato se materializado, essas expressões se tornaram clichês ou superstições para nós, que as usamos apenas para fins indicativos. De fato, como eu disse em outro lugar, “se excluíssemos de nosso pensamento teológico e metafísico todos os símbolos, imagens e teorias que chegaram até nós desde a Idade da Pedra, nossos meios de comunicação se limitariam quase que inteiramente ao campo da observação empírica e das previsões estatísticas (chamadas de leis da ciência) baseadas nessas observações; o mundo teria perdido seu significado”. Os símbolos originais, como disse um conhecido arqueólogo, “estavam ancorados no topo, não na base”; havia neles um “equilíbrio polar entre o físico e o metafísico” (denotação e implicação, uso e significado), mas eles foram “esvaziados cada vez mais em sua descida até nós”.
Além disso, na medida em que nos “superespecializamos” e não nos entendemos mais, somos “idiotas” — etimologicamente “indivíduos peculiares”, e tão peculiares a ponto de serem excluídos de continentes inteiros do universo do discurso normalmente humano. O cientista e o teólogo, o fazedor e o consumidor, o filósofo e o povo não se entendem mais; e falamos do “Oriente misterioso” de uma forma que seria impossível na Idade Média. Às vezes, parece que quanto mais nossos meios de comunicação melhoram e se multiplicam, menos somos capazes de realmente entender uns aos outros, e quanto mais sabemos sobre áreas cada vez menores, mais impossível se torna entender nosso próprio passado. Seria difícil imaginar uma cultura mais provinciana do que a do homem mediano educado de hoje.
[pós 1944]