DOUTRINA DO DESPERTAR — A CONSCIÊNCIA SAMSARICA
O termo dukkha é habitualmente traduzido pelo vocábulo “dor”, donde a concepção estereotipada segundo a qual a essência do ensinamento budista seria simplesmente que o mundo é dor. Mas isto nada mais é que o aspecto mais popular, exotérico, profano — poderíamos dizer — da doutrina budista. Certamente, não se contestará que dukkha, nos textos, se relaciona também a coisas — como envelhecer, cair doente, morrer, sofrer o que não se deseja e não ter o que se deseja, etc. — coisas que podem, em geral, ser mesmo motivos de dor e de sofrimento. Mas, por exemplo, a única ideia, segundo a qual o fato mesmo de nascer seja dor, deveria já dar o que pensar, e mais ainda, o fato de relacionar este termo a estados de consciência, não humanos, “celestes” ou “divinos”, que não podem certamente serem considerados como sujeitos a “dor”, segundo o sentido comum. A significação muito profunda, doutrinal e não popular, do termo dukkha, mais que “sofrimento”, foi a de “agitação” e “inquietude”, — de “comoção” (Stcherbatsky, The central conception of buddhism, op. cit., p. 48). Logo pode-se dizer que ele é a contrapartida vivida daquilo que se exprime na teoria mesmo da universal impermanência e não substancialidade, da anicca e da anatta. É a razão pela qual, nos textos, dukkha, anicca e anatta, se não chegam aparecer como sinônimos (Jasink, Mistik des buddhismus, op. cit., p. 95), entretanto, encontram-se unidas por uma relação íntima. Esta interpretação é confirmada, se consideramos dukkha à luz de seu contrário, ou seja, à luz dos estados de “liberação”: dukkha nos aparece então como a antítese de uma impassibilidade calma, de uma superioridade, não somente à dor, mas também à alegria, como o contrário da “incomparável segurança”, do estado no seio do qual não há mais “errância inquieta”, mais “ir e vir”, posto que o medo e a angústia foram destruídos. Para entender verdadeiramente o conteúdo de dukkha, primeira verdade dos ariyas, mas também para se dar conta da substância mais profunda da existência samsarica, à noção de “comoção” e de “agitação” se encontra associada aquela de “angústia”. “Uma raça que treme” — eis o que o Buda viu no mundo: homens trêmulos, ligados a sua pessoa, “semelhantes a peixes em uma corrente quase seca” (Atthakavagga, II, 5-6). “Este mundo caiu na agitação” — tal é o pensamento que lhe veio, quando ele se esforçou ainda a alcançar a iluminação (Samyutta Nikaya, XII, 10): “Em verdade, este mundo foi vencido pela agitação. Nasce-se, morre-se, decai-se de um estado, passa-se a outro. E desta pena, desta decadência e desta morte, ninguém conhece uma escapatória” (Digha Nikaya, XIV,II,18). Trata-se portanto de algo muito mais vasto e profundo que o que se poderia jamais expor com um termo, como aquele de “dor”.