O presente artigo trata do Vivṛti [comentário] no ĪPK I.4.1-2. No capítulo anterior, Utpaladeva, referindo-se a uma afirmação enigmática no Bhagavad-gītā, havia identificado três poderes (śakti) no Senhor: Cognição, Memória e Exclusão. Depois de fazer algumas observações preliminares a respeito deles como um todo, inicia agora uma investigação detalhada sobre cada um deles. Seu objetivo é mostrar que a cognição, a memória e a exclusão, que constituem a própria base do processo de conhecimento na mente humana, são indiretamente também uma prova da coincidência do indivíduo com a Consciência [Consciousness] universal. Nenhum destes fenômenos pode ser realmente explicado e seu funcionamento complexo considerado satisfatoriamente em termos meramente “mecânicos”, como antes fazem todos os budistas. O sujeito individual pode conhecer, lembrar e excluir apenas se for concebido como inscrito em uma eterna e, ao mesmo tempo, dinâmica eu-dade [I-ness] universal, isto é, Śiva.
Se a investigação de Utpaladeva começa com a memória, violando a ordem acima mencionada, é “porque de uma maneira muito clara (suṣpaṣṭam) a memória pode servir como uma razão lógica para o estabelecimento da identidade do si mesmo com o Senhor”. O ponto de partida é a definição clássica de memória dada em Yogasūtra I.11: “Memória é a não extinção do objeto anteriormente percebido” (anubhūtaviṣayāsampramoṣah smṛtih). A análise sustentada por Utpaladeva destaca alguns pontos cruciais contidos em um processo aparentemente simples: como é possível atribuir diferenciação temporal a um cognoscedor que é permanente em sua natureza essencial? Qual é a relação entre o ato cognitivo da percepção original e o ato cognitivo da memória subsequente? Como o último pode trazer o primeiro à luz novamente sem objetivá-lo? Nesse ponto, de fato, o Șaiva [Xivaísta de Caxemira] e seu principal oponente, o epistemólogo budista, estão de acordo: uma cognição é auto-luminosa e não pode ser objeto de outra cognição. A explicação budista padrão está longe de ser satisfatória: dizer que a percepção produz um saṃskāra, que por sua vez produzirá o fenômeno da memória, apenas explica o fato de que a memória tem um certo conteúdo objetivo, mas deixa de fora o componente “subjetivo” representado pelo fato de o objeto ter sido “colorido” pela percepção anterior, ou, para ser mais preciso, por ter sido “já” percebido em um determinado momento passado. A memória, de fato, é de fato a memória do objeto passado, mas também a percepção do passado. Em vez disso, como diz Abhinavagupta, o que o saṃskāra é capaz de transmitir (ou ressuscitar) não é a percepção original nem o objeto, na medida em que foi reconhecido por essa percepção passada. Isso pressupõe um organismo vivo em operação, uma consciência dinâmica e unitária capaz de se mover livremente entre diferentes momentos do tempo. Tendo isso em mente, Utpaladeva introduz deliberadamente uma mudança aparentemente pequena, mas de fato bastante significativa, na definição de Yogasūtra, lendo asampramoṣaṇam no lugar de asampramoṣah. Devido à própria natureza do fenômeno da memória, espera-se que a consciência funcione no nível do sujeito individual, totalmente dentro do mundo de māyā. Como Utpaladeva coloca: “Pois essa função pertence somente ao Senhor, idêntica à consciência, e ocorre devido à Sua liberdade, nestes termos: é o Senhor que, tendo assumido a forma do conhecedor [limitado], identificado com o puryaṣṭaka e outros planos sobre os quais a liberdade se sobrepõe, reconhece, lembra ou verifica”.
Mas como, analiticamente, o processo de memória funciona? Tanto o ato de averiguação (niścaya, adhyavasāya) quanto a memória pertencem à categoria de vikalpa, sendo a forma maya de vimarśa. A principal diferença entre adhyavasāya, imediatamente após a manifestação original (ou ‘brilhante’) do objeto – ou seja, sua percepção – e smṛti, que é mais ou menos distante dele, é que, no primeiro caso, temos o ser/estar-ciente [awareness] reflexivo (parāmarśa) ‘isto’, ao passo que no segundo temos o ser/estar-ciente reflexivo ‘aquilo’. No entanto, de acordo com a filosofia Pratyabhijñā, apenas uma parāmarśa de um objeto atualmente “brilhante” é possível. Portanto, a memória não pode ter como objeto algo que apenas “brilhou” no passado (Vṛtti: prakāsitasya parāmarśo na kṛtaḥ syāt). Uma vez que o assunto foi colocado nesses termos (a possibilidade que a memória possa ter como seu ‘objeto’ a percepção anterior foi descartada desde o início), Utpaladeva é capaz de apontar para a centralidade de um eu dinâmico como a única maneira de sair do impasse. É o eu que garante a possibilidade de unificar as várias cognições que ocorrem em momentos diferentes, resolvendo assim a aparente inconsistência entre um (presente) vimarśa e um (passado) anubhava. O único e mesmo svasaṃvedana de ambas as cognições cria a ponte necessária entre elas que o epistemólogo budista falha em se dar conta. Um esclarecimento adicional é fornecido por Abhinavagupta no ĪPVV (II, p. 32, ll. 10-13): a prakāśa referente ao objeto parcial (arthāṃśe) pertence ao passado; mas o prakāśa, como apreendido pelo vimarśa, referente a parte-si (svātmāṃśe), não é limitado pelo tempo. Assim, o vimarśa na memória pode se conectar com o vimarśa na percepção e, através dele, com a luz anterior do objeto – dessa maneira atendendo aos dois requisitos: ocorrer no presente e não se divorciar de prakāśa (Torella 2002: 106f., Nota 12).