A história do pensamento indiano, durante o período que precede o nascimento e a missão de Buda (aprox. 563-483 a.C), revela uma gradual intensificação na importância dada ao problema da redescoberta e assimilação do Eu. Os diálogos filosóficos das Upanixades indicam que durante o oitavo século a.C. houve uma mudança de orientação dos valores, deslocando o foco de atenção do universo exterior e limites tangíveis do corpo para o universo interior e intangível, levando às suas últimas conclusões lógicas as perigosas implicações desta nova direção. Ocorria um processo de retirada do mundo normalmente conhecido. As potências do macrocosmo e as faculdades correspondentes do microcosmo eram, em geral, desvalorizadas e relegadas com tal ousadia que todo o sistema religioso do período anterior corria o risco de ruir. Os reis dos deuses, Indra e Varuna, e os divinos sacerdotes dos deuses, Agni, Mitra, Brhaspati, já não mais recebiam suas cotas de preces e sacrifícios. Ao invés de direcionar a mente a estes simbólicos guardiões e modelos da ordem natural e social, sustentando-os e mantendo-os vigentes através de uma contínua sequência de ritos e meditações, o homem voltava sua atenção para o íntimo, esforçando-se por conseguir manter-se num estado de crescente autoconsciência através da reflexão profunda, da auto-análise sistemática, do controle respiratório e das severas disciplinas psicológicas do Ioga.
Os antecedentes desta radical introjeção já se divisavam em muitos hinos védicos como, por exemplo, na seguinte oração em demanda de poder, na qual as forças divinas, manifestas de diversas maneiras no mundo exterior, são conjuradas para encarnar no sujeito, fazer moradia em seu corpo e vivificar suas faculdades:
“Que o brilho presente no leão, no tigre e na serpente; em Agni (deus do fogo sacrificial), nos brâmanes e em Surya (o sol) seja nosso! Possa a encantadora deusa que deu à luz a Indra vir a nós, com seu esplendor!
“Que o brilho presente no elefante, na pantera e no ouro; nas águas, no rebanho e nos homens seja nosso! Possa a encantadora deusa que deu à luz a Indra vir a nós, com seu esplendor!
“Que o brilho presente na carruagem, nos dados, na força do touro; no vento, em Parjanya (Indra como senhor das chuvas) e no fogo de Varuna (senhor regente do oceano e do quadrante ocidental) seja nosso! Possa a encantadora deusa que deu à luz a Indra vir a nós, com seu esplendor!
“Que o brilho presente no homem de casta real, na retesada pele do tambor, na força do cavalo e no grito dos homens seja nosso! Possa a encantadora deusa que deu à luz a Indra vir a nós, com seu esplendor!”
O sistema adhyatman-adhidaivam totalmente desenvolvido no período das Upanixades empregava, como meio para se chegar ao absoluto desapego, um programa completo de correspondência entre os fenômenos subjetivos e objetivos. Eis um exemplo, “Uma vez criadas, as divindades do mundo disseram ao Atman (o Eu como Criador): ‘Dai-nos uma moradia onde possamos nos estabelecer e alimentar’. Levou-lhes um touro, e elas disseram: ‘Em verdade, isto não é suficiente para nós’. Levou-lhes então um cavalo, e elas disseram: ‘Em verdade, isto não é suficiente para nós’. Levou-lhes uma pessoa, e elas disseram: ‘Oh! Muito bem! Em verdade, um pessoa está muito bem!’ Ele lhes disse: ‘Entrem em suas respectivas moradas!’ O fogo se fez fala e entrou na boca. O vento se fez alento e penetrou nas narinas. O sol se fez visão e entrou nos olhos. Os quadrantes do céu se fizeram audição e penetraram nos ouvidos. As plantas e as árvores se fizeram cabelos e entraram na pele. A lua se fez mente e entrou no coração. A morte se fez alento descendente e penetrou no umbigo. As águas se fizeram sêmen e entraram no membro viril.”
Ensina-se ao discípulo que aplique o conhecimento de tais correspondências em meditações como esta: “Assim como um jarro se reduz a pó; uma onda, a água; ou um bracelete, a ouro;assim também o universo se reduzirá a mim. Maravilhoso sou! Adoração a mim! Porque quando o mundo, desde seu deus mais supremo até a menor folha de relva, se dissolve, esta destruição não é minha”.
Evidentemente, deparamo-nos aqui com uma total dissociação entre o eu fenomênico (a personalidade ingenuamente consciente que junto ao seu mundo de nomes e formas será, a seu tempo, destruída) e o outro Eu transcendental (atman), profundamente oculto, essencial ainda que esquecido, mas que quando é recordado lança um emocionante brado que aniquila o mundo: “Maravilhoso sou!” Este outro não é algo criado mas sim o substrato de todas as coisas criadas, de todos os objetos, de todos os processos. “As armas não o cortam, o fogo não o queima, a água não o molha, o vento não o seca.” As faculdades dos sentidos, normalmente direcionadas para fora, buscando, apreendendo com os objetos e reagindo ante eles, não entram em contato com a esfera da realidade permanente, mas apenas com as mudanças passageiras das perecíveis transformações de sua energia. Assim, a força de vontade, orientada para a obtenção de fins mundanos, não resulta em grande ajuda para o homem; nem os prazeres e as experiências dos sentidos podem iniciar a consciência no segredo da plenitude da vida.
De acordo com o pensamento e a experiência da Índia, o conhecimento das coisas impermanentes não conduz a uma atitude realista, pois estas coisas carecem de substancialidade, perecem. Tampouco podem levar a uma concepção idealista porque a inconsistência das coisas, que estão em fluxo contínuo, se contradizem e refutam uma a outra. As formas fenomênicas são, por natureza, falazes e ilusórias. Quem nelas se apoia encontrará dificuldades. Elas não passam de partículas de uma grande ilusão universal manobrada pelo mágico esquecimento do Eu, sustentada pela ignorância e prolongada pelas paixões enganosas. A pueril ignorância da verdade oculta do Eu é a causa primária de todas as concepções errôneas, das atitudes impróprias e dos consequentes tormentos deste mundo embriagado consigo mesmo.
Encontra-se implícita em tal proposição a base para uma mudança de interesse, não apenas nos meios e objetivos das pessoas mundanas, mas também nos ritos e dogmas da religião destas criaturas iludidas. O criador mitológico, o Senhor do Universo, já não mais importa. Somente a consciência introvertida, voltada e dirigida ao âmago da própria natureza do sujeito, alcança aquela linha fronteiriça onde os acidentes transitórios encontram sua fonte imutável. E tal percepção pode finalmente guiar a consciência para além da fronteira, fazendo-a fundir-se — perecer e tornar-se assim imperecível — no substratum onipresente de toda substância. Assim é o Eu (atman), fonte última, mantenedora e perdurável dos seres; doador de todas as manifestações peculiares, das mudanças das formas e desvios do estado verdadeiro; são os assim chamados vikara: transformações e evoluções da manifestação cósmica. O sábio descobre as causas do que aqui é exposto, ultrapassando o estágio do mero envolvimento, não através da glorificação e da submissão aos deuses, mas sim pelo conhecimento, o conhecimento do Eu.
Este conhecimento é obtido mediante uma destas duas técnicas: 1. rejeição sistemática do mundo — em sua totalidade — como ilusório, ou 2. profunda compreensão da absoluta materialidade do mundo. [Zimmer]