O desejo de Deus é o desejo de conhecer a si mesmo. Para Boehme, conhecer a si mesmo é sentir a si mesmo. Falaríamos de sensualismo em Boehme se fosse possível abstrair essa palavra da filosofia que lhe deu origem. Para o teosofista, o verdadeiro espírito se manifesta apenas na plenitude da alma, ou seja, na totalidade de seus poderes. Todos os sentidos contribuem para a glória do espírito. Para Boehme, uma alma é sempre uma alma sensível. Naturalmente, os sentidos são compreendidos em dois níveis, dependendo da qualidade da alma.
A Divindade é inicialmente puro espírito. Entretanto, aspira a se tornar sensível, perceptível”. A Divindade se torna sensível para ser percebida pelo homem. Mas também adquire sensibilidade para apreender a si mesma. Conhecer a si mesmo é saborear a si mesmo em uma contemplação para a qual contribuem todos os poderes da alma.
Quando o homem se tornar participante da natureza divina, verá Deus. A Divindade primordial não é capaz de olhar para si mesma dessa maneira? Em um primeiro momento, parece que sim. Depois, em um exame mais detalhado, duvidamos disso.
A Divindade parece ser dotada de visão mesmo antes de iniciar o ciclo de sua manifestação. Nesse nível, Boehme a apresenta como um olho. A Divindade está toda nesse olho, que é menos um órgão do que uma visão. Toda a bem-aventurança divina está nessa visão, simbolizada pela Sabedoria, em quem Deus colocou todo o seu prazer. Deus vê por meio de sua Sabedoria, que aparece logo no início de seus caminhos, antes mesmo do início do ciclo de sete formas. Esse ciclo começa na escuridão. Portanto, há uma visão que precede a escuridão, simbolizada pela Sabedoria. Esse conceito, vale ressaltar, ainda não foi encontrado na primeira obra de Boehme, A Aurora Nascente. Ele se desenvolverá mais tarde. (…)
Parece que esta visão primordial pode ser considerada no nível da Deidade suprema e independentemente do ciclo de sua emanação septiforme. Mas, na verdade, o olho aparece em um momento em que a Divindade está se preparando para emergir de si mesma para inaugurar esse ciclo, quando este movimento já está em andamento. O olho primordial representado pela Sabedoria hipostasiada está no limiar da manifestação divina. A visão que simboliza prefigura o desejo que engendrará; lhe é inseparável. A visão desperta o desejo; não pode ser concebida sem ele. Não pode ser o trabalho de uma Divindade que repousa em si mesma, autossuficiente em um estado de pura indeterminação.
Desde o momento em que a Divindade aparece como um olho, já se dividiu em duas para dar origem à sua emanação. O nascimento da Sabedoria é o princípio desta divisão. A Sabedoria é, por excelência, o símbolo da Divindade que se comunica. Agora temos dois aspectos do Divino: de um lado, um Absoluto incomunicável e, de outro, uma Divindade que se desdobra para se revelar.