Utpaladeva (ĪPK:II.1.2) – Si-mesmo, memória, “eu”

Raffaele Torella

1-2. [Objeção] Há um tipo de cognição em que a realidade particular [svalaksana] aparece e outro tipo de cognição, chamado elaboração mental [vikalpa], inseparavelmente conectado com o discurso [sābhilāpam], que aparece em múltiplas formas. Para nenhum dos dois há qualquer necessidade de postular qualquer sujeito percebedor estável, uma vez que não aparece neles. Além disso, a noção de “eu” [ahamprafitih] tem, na realidade, como referente o corpo etc…

— Um tipo de cognição, que consiste na percepção direta da realidade particular claramente manifestada [sphutāvabhāsa], é chamado de “isento de elaborações mentais” [nirvikalpakam]; o outro tipo de cognição, por outro lado, que, permeado pela palavra, aparece nas várias formas de memória, dúvida, fantasia etc., é chamado de “representação, elaboração mental” [yikalpa]. Nem um nem outro são admissíveis como dependentes de outra entidade distinta do próprio conhecimento na forma de consciência, uma vez que essa outra entidade não é percebida [tasyānupalabdheh]. Quem, então, é esse Si permanente? Mesmo com base na noção de “eu”, que está indissoluvelmente conectada ao discurso, não é possível determinar a existência de um cognoscente que transcenda o que são realidades simplesmente cognoscíveis, a saber, o corpo e assim por diante.

3. [Como poderíamos explicar a memória, que se conforma à percepção direta quando esta não está mais presente, se não houvesse um si permanente, que é o sujeito da percepção?

— Uma vez que a percepção direta anterior desapareceu no momento da memória, a memória, cuja qualidade essencial é precisamente sua dependência daquela percepção anterior do objeto, não poderia surgir, a menos que se admita a persistência do ser/estar-ciente dessa percepção também no momento da memória. E essa com-ciência duradoura em diferentes momentos é precisamente o si, o sujeito que percebe.

4. [Objeção] Mesmo que reconheçamos a existência de um si, a memória ainda não é explicada, dado que a percepção não existe mais e que somente através dela [a percepção] a memória tem acesso aos objetos anteriormente percebidos. [Resposta]. Mas a memória age sobre aquelas mesmas coisas que foram objeto da percepção…

— Uma vez que a percepção direta [manifestação] do objeto tenha cessado, o objeto não existe mais nem mesmo para a memória, uma vez que é assumido precisamente por meio da percepção direta. Portanto, mesmo que se reconheça um si que consiste em uma consciência unitária, a memória se encontra sem um objeto e, assim, toda a atividade mundana entra em colapso. Se, por outro lado, afirmas que a memória tem como objeto a percepção que não existe mais…

5. …na medida em que a ocorrência da memória é devida às impressões latentes deixadas pela percepção direta. [Objeção] Se é assim que as coisas são, qual é a necessidade desse fardo inútil de um si permanente?

Da percepção direta deriva uma impressão latente [samskārah]; a memória que surge disso está em conformidade com essa percepção anterior e torna essa percepção — na qual o objeto está imerso — manifesta. Se as coisas são explicadas nesses termos, por que é necessário supor um sujeito permanente inútil, já que até mesmo o defensor da existência do si reconhece a existência da impressão latente e isso, por si só, é suficiente para explicar a memória?

6. Se as qualidades são separadas [extrínsecas ao si], então, como a natureza do si permanece inalterada, as impressões latentes são suficientes para explicar o fenômeno da memória. O sujeito da memória é, portanto, apenas uma construção mental [kalpitah], assim como o sujeito da percepção.

— O si, mesmo que seja invocado como um substrato de qualidades que são distintas dele, como prazer, dor, conhecimento etc., não serve a nenhum propósito útil. Na verdade, não desempenha nenhuma função no fenômeno da memória, pois não sofre nenhuma modificação, uma vez que não se combina com as qualidades acima mencionadas, que são concebidas como separadas. Portanto, como no caso do sujeito da percepção, dizer que o si é o sujeito da memória é puramente uma construção mental.

7 . Se a cognição fosse consciente [citsvarūpam], então ela deveria ser permanente como o si; se, ao contrário, não fosse senciente, como poderia iluminar os objetos?

— Se a cognição fosse consciente por natureza, então, incapaz de ser associada a tempo e lugar — que são qualidades pertencentes aos objetos —, se tornaria permanente etc., como o si. Se, por outro lado, não fosse senciente, como poderia iluminar o objeto?

8 . [Resposta]: Assim como o intelecto assume a forma do objeto, também assume a senciência [caitanyam] do si. [Objeção]. Nesse caso, não é insciente, pois, se fosse, não poderia iluminar o objeto.

O intelecto [buddhih] é a cognição. Embora ele próprio seja insciente, assim como assume o reflexo da forma do objeto, da mesma forma, ele também assume o reflexo da sensibilidade pertencente ao si. Assim, [ao assumir ambos], pode iluminar o objeto. No entanto, [responde-se] que deve ser senciente por natureza.

Portanto, a cognição, embora exista, não está relacionada a nada mais [ou seja, a um sujeito], porque isso foi reconhecido como insustentável. A ação, por outro lado, não existe em si mesma, nem está relacionada a qualquer outra coisa.

9 . Também a ação [como uma realidade separada é logicamente inadmissível, pois] consiste no surgimento de corpos, etc., em diferentes lugares, etc. [tattaddeśādijātatā] e nada mais, uma vez que nada mais é percebido; nem é defensável que — sendo una e também caracterizada pela sucessão — possa estar relacionada a uma realidade unitária.

— A ação, também, concebida como una e constituída por várias partes anteriores e posteriores, consistindo na atividade de fatores [kāraka] não é sustentável, pois não é possível atribuir unidade a algo caracterizado pela sucessão, ou seja, que existe em uma multiplicidade de momentos. Tampouco é admissível que tenha um substrato que seja caracterizado pela sucessão temporal e que seja unitário em sua natureza. A ação é apenas “ir”, “mudar” e assim por diante, o que é apenas a suposição, por parte dos corpos etc., de novos estados de existência em vários e diversos momentos e lugares, uma vez que nada mais distinto disso é percebido.

10 . As várias coisas passam a existir em concomitância com a presença de certas outras coisas: isso é o que é experimentado e nada mais. Não há nenhuma relação [sambandhah] que não seja a de causa e efeito.

— O que é percebido diretamente é simplesmente que, quando uma determinada coisa anterior está presente, uma coisa posterior passa a existir. Como foi argumentado no caso da ação, não existe nenhuma relação de ação e fatores [kriyākārakasambandhah], uma vez que tal “relação” não é percebida como uma entidade distinta. Não há nenhuma conexão entre as coisas que não seja a de causa e efeito.

11 . [Uma relação [sambandha], seja qual for sua concepção, é inadmissível, pois, como se baseia em dois termos relacionados, não pode ser unitária em sua natureza; uma vez que uma coisa que [já] está realizada [siddhasya] não pode ‘requerer’ [apeksanāt] outra e a dependência [pāratantrya] etc. não são logicamente sustentáveis. Assim, o agente também é meramente uma construção mental.

— Uma relação é baseada em dois termos [dvisthah] e não é logicamente sustentável que se baseie em ambos e preserve sua natureza unitária. Tampouco é concebível uma relação na forma de um requisito recíproco [anyonyāpeksā] entre duas coisas que já foram realizadas, nem na forma de uma dependência [pāratantrya] de duas coisas autônomas. Com base no que foi dito, assim como o estado do cognoscente é uma construção mental, o mesmo vale para o agente. Assim, como é possível afirmar que o Si é o Senhor de tudo?

”B.N.

”] [The Vijnānavādin says:]

Just see. There is one variety of perceptual knowledge that brings to light the basic thing as it is in itself [without the imposition of any name or form on it]. The other [variety of knowing] is that which is variously accompanied by word-images and is known as knowledge with definite or indefinite ideation [that is, conceptual knowledge]. Neither of these two is related [or belongs] to any permanently existing knowing subject, because he is apparently absent in both of them. Even the idea of ‘I-ness’ rests only on the physical body, etc.

[The Saiva philosopher replies:]

How could memory, agreeing essentially with previous direct perception, become at all possible after such |direct] knowing comes to its end, if the Atman, the experiences were not accepted as a constantly existing entity?

[The Buddhist objects:]

Even if the existence of Ātman is accepted, how can the recollection of an object, known through mental experience, become possible long after such experience has already come to its end? If, however, it is argued that a particular memory takes the same object as the object of the concerned previous experience—since it has risen according to the impressions laid [on Ātman] by the [previous] experience—then it can be asked: What would be the advantage of a permanently existent Ātman, lying there uselessly, like a lump, in between?

[The Buddhist further states:]

Since the character of the Ātman does not change at all during its different functional activities [such as perception, conception, and so on], and since memory can occur [solely] with the help of impressions, the recollector [the Ātman] is also an imaginary entity like the experiencer.

[It is argued further:]

If knowledge has the nature of Consciousness, one can ask if, like the Ātman, it is eternal, or if it is non-eternal in character. [That is,] one self-dependent entity cannot be taken as dependent on another such entity. Otherwise, if it [knowledge] is taken as unconscious by nature, then how can it illuminate anything?

If it is then argued that buddhi [the understanding sense or intellect] bears in it the consciousness of the Ātman, just as it bears the reflection of an object, then it may either become sentient itself or continue to remain insentient, in which case it cannot illuminate anything.

Even an action of the body, etc., is simply its contact with different places, etc., in space. [The action] is not any special entity different from [the body, etc.] because it is not seen as such. Besides, it is not a single sequential entity and cannot suitably be an attribute of a single substance.

[The Vijnānavādin says:]

What is seen [when elements appear to be in relation to each other] is the rise of some particular objects preceded by some other [similar] ones, and nothing beyond that. Only such [succession] is the relation between cause and effect.

[The Vijnānavādin continues:]

The concept of a doer is also based on imagination because: [1] a connection between two [substances! must involve more than one form; [2] an established entity does not require dependence on anything other than itself: and [3] mutual dependence [between two established objects or facts] is not an appropriate [concept] at all.

Utpaladeva