Tratado da Unidade

EPÍSTOLA DA UNICIDADE ABSOLUTA

Este tratado ou epístola (Epître sur l’unicité absolue), onde se exprime com tanta força quanto concisão a doutrina da Unicidade do Ser (wahdat al-wujud), foi frequentemente atribuído a Ibn Arabi pelos copistas muçulmanos como até pelos especialistas ocidentais. Aqueles mesmo que o restituem a seu verdadeiro autor apresentavam geralmente este último de maneira vaga e inexata. Na introdução de Michel Chodkiewicz de sua excelente tradução francesa, recuperando as fontes árabes ou persas, busca esclarecer algo da personalidade e do ensinamento de Awhad al-din Balyani, sufi originário da região de Shiraz, que morreu em 686/1288. Aí se pode ver que, se a influência de Ibn Arabi é sensível em sua obra, é todavia na linhagem de um outro grande mestre andaluz, Ibn Sabin, que se deve situar o autor da Epístola.

Após seis páginas e uma apreciação escolástica da provável autoria do conhecido “Tratado da Unidade”, Chodkiewicz a partir de Jami busca decifrar este autor, recuperando notícias sobre o mesmo em forma de “anedotas”.

Se dirigindo a seus discípulos, Awhad al-din Balyani teria declarado: “Sejais “os que contêm” Deus! Se não sois os que contêm Deus, não sejais os que contêm vós mesmos: pois se se não sois os que contêm vós mesmos, sois os que contêm Deus! Diria mais ainda: Sejais Deus! E não sois Deus, não sejais vós mesmos; pois se não sois vós mesmos, sois Deus!”

Essa formulação paradoxal, e exotericamente escandalosa está perfeitamente coerente com a perspectiva doutrinal própria à Epístola. Pode mesmo se dizer que esta última dela constitui de ponta a ponta o comentário por excelência.

Outro incidente relatado por Jami é o seguinte:

Um dos discípulos de Balyani estava isolado na montanha. Uma serpente tendo se aproximado dele, ele quis a pegar. A serpente o picou e seu membros se puseram a inchar. Balyani soube e mandou buscar seu discípulo. Disse então: “Porque pegastes esta serpente, tanto que ela o picou? — Ó mestre, respondeu o discípulo, “dissestes tu mesmo que não há senão Deus”. Vendo esta serpente, não vi outra coisa senão Deus. Reunindo minha coragem, a peguei então!” Balyani replicou: “Quando Deus se manifesta a ti sob um aspecto de poder terrificador, fuja! Não te aproximes dEle, se não te acontecerá de novo o que acaba de ocorrer! Em seguido o fez se sentar e lhe disse: “Abstenhas-te de semelhantes audácias até que tu O conheças perfeitamente”. Depois do que recitou invocações e soprou sobre ele. O inchaço diminuiu e o discípulo foi curado.

A noção de “unicidade do ser” é muito identificada ao pensamento de Ibn Arabi, o que pode levar ao questionamento se as ideias enunciadas por Balyani seriam desta linhagem, e em que medida. Embora a “unicidade do ser” tenha se tornado um tema maior do pensamento de Ibn Arabi e seus discípulos, a noção não foi sua “invenção” e portanto não é privilegiada somente aí.

É necessário se fazer uma distinção capital entre algumas noções chaves para Ibn Arabi não devidamente exploradas em Balyani:

  • Unidade (ahadiyya), que é o grau da Essência absolutamente incondicionada
  • Unicidade (wahadaniyya), que da Unidade constitui uma primeira determinação
  • Singularidade (fardaniyya) que implica em seu correlativo, a pluralidade (vide Um Muitos).

Do mesmo modo Ibn Arabi não trata destas noções em associação com o famoso haddith do profeta “aquele que conhece a si mesmo conhece seu Senhor”. Balyani faz desta Epístola uma verdadeira exegese esotérica deste haddith. Ibn Arabi, por sua vez, trata inúmeras vezes deste haddith em seus escritos.

“Quando este segredo (do haddith) se desvela para ti, sabes … que tu és tu mesmo a meta de tua busca … Tu vês Seus atributos como teus e sua essência como tua essência.” Dito de outro modo: quando conheces teu si mesmo, conheces teu Senhor porque teu si mesmo é idêntico a teu senhor, o qual não é outro que a Essência divina ela mesma.

A seguir estaremos apresentando uma tradução combinando a versão francesa de Michel Chodkiewicz com a versão espanhola de Roberto Pla, acompanhada dos comentários em ambas versões.

Tratado da Unidade