Excertos da tradução em português de Agatha M. Auersperg
O que me deixava completamente desnorteado era a impossibilidade que eu estava sentindo de me admirar dos acontecimentos.
Hillel adivinhou meu pensamento, porque sorriu enquanto me ajudava a me levantar da maca. Apontou para uma poltrona e disse:
— De fato, não há nada de extraordinário. Somente os sortilégios — os kichouph — despertam o medo nos corações dos homens. A vida perturba e queima como um cilício, mas os raios luminosos do mundo espiritual são quentes e suaves.
Fiquei calado, pois não sabia o que responder. Parecia também que ele não estava esperando resposta alguma. Sentou em frente a mim e continuou serenamente:
— Um espelho de prata — se ele tivesse a capacidade de sentir alguma coisa — sofreria somente na hora do polimento. Mas depois de ficar liso e brilhante, ele reflete todas as imagens sem sentir dor e nem emoção.
Continuou suavemente: — Feliz o homem que pode dizer: eu fui polido.
Pareceu refletir um instante e logo ouvi que murmurava uma sentença em hebraico: — Lischouosecho Kiwisi Adoschem. (Confio em sua ajuda, ó Eterno) — Sua voz voltou clara e ouvi que dizia:
— Tu vieste a mim num sono profundo e eu te despertei. No salmo de Davi está escrito:
“Então eu falei para mim mesmo: aqui eu começo: foi a direita de Yahveh que conseguiu esta mudança.”
Quando os homens se levantam do leito, pensam ter abandonado o sono e não sabem que são vítimas de seus próprios sentidos, tornando-se presas a um sono muito mais profundo daquele do qual acabam de despertar. Só existe um verdadeiro despertar e é deste que tu te aproximas agora. Se falares disso aos homens eles te dirão que estiveste doente. Por isso seria inútil e cruel falar com eles.
Eles passam como uma torrente. . .
E parecem adormecidos.
Como uma erva que logo murchará.. .
Que será arrancada ao anoitecer e secará.
— Quem era o homem estranho que foi me visitar em meu quarto e que me deu o livro “Ibbur”? Quando eu o vi, eu estava desperto ou estava sonhando? Eu estava querendo perguntar isso a Hillel, mas ele respondeu antes mesmo que eu pudesse formular meu pensamento com palavras:
— Digas a ti mesmo que o homem que te visitou e que tu chamas de Golem significa o despertar da morte por meio da mais íntima vida espiritual. Aqui na terra as coisas são simplesmente símbolos eternos cobertos de pó.
Todas as formas que vês, tu as imaginaste com os olhos. Tudo que está concretizado numa forma, antes era somente espírito.
Estava percebendo que ideias que antes pareciam firmes em meu cérebro estavam se desprendendo e navegando sem rumo, como navios sem leme sobre um mar infinito.
Hillel continuou calmamente:
— Aquele que foi desperto não pode mais morrer. O sono e a morte são a mesma coisa.
—. .. não pode mais morrer? — Uma dor surda se apoderou de mim.
— Há duas sendas que correm paralelas: a da vida e a da morte. Você pegou o livro Ibbur e você o leu. Tua alma foi fecundada pelo espírito da vida.
Dentro de mim algo gritava: — Hillel, Hillel, deixe eu tomar o rumo de todos os homens, deixe que tome o rumo da morte!
O rosto de Schemajah Hillel continuava grave.
— Os homens não escolhem os rumos, nem o da vida e nem o da morte. Eles são levados como folhas numa tempestade. No Talmud está escrito: “Antes de criar o mundo Deus colocou um espelho em frente aos seres; eles viram os sofrimentos espirituais da existência e as delícias que os seguem. Então, alguns aceitaram os sofrimentos enquanto outros os recusaram, e Deus cancelou estes do livro dos vivos”. Tu, porém, tomaste um rumo, e estás caminhando nesta direção porque foste tu a escolher livremente — apesar de não te lembrares mais, tu foste chamado por ti mesmo. Não te afliges: quando chega o conhecimento, também chega a memória. O conhecimento e a memória são a mesma coisa.
O tom amistoso e quase carinhoso de Hillel devolveu-me a calma e me senti amparado como uma criança doente que sabe que sua mãe está ao lado.
Levantei os olhos e percebi que o quarto estava povoado de numerosos vultos que estavam ao nosso derredor, alguns vestidos de mortalhas brancas como as dos antigos rabinos, outros com chapéus de três pontas e sapatos com fivelas de prata — mas Hillel passou sua mão sobre meus olhos e o quarto voltou vazio.
Em seguida ele me levou até a escada e me deu uma vela acesa para iluminar o caminho até meu quarto.
Deitei e tentei dormir, porém não conciliei o sono e me senti num estado estranho: não estava dormindo, não estava desperto e não estava sonhando.
Tinha apagado a luz, mas assim mesmo tudo ressaltava nitidamente e conseguia ver claramente todos os contornos. Sentia-me bem à vontade, completamente livre daquela agitação peculiar que nos tortura quando nos encontramos numa disposição parecida.
Em toda a minha vida nunca me sentira capaz de pensar com tanta lucidez e precisão. O influxo da saúde corria pelos meus nervos e alinhava minhas ideias em formações certas, como um exército aguardando minhas ordens.
Ao primeiro chamado elas se apresentavam à minha frente para executar minhas ordens.
Lembrei-me de uma aventura que eu tentara gravar durante a semana passada, sem consegui-lo, pois os inúmeros defeitos da pedra não podiam ser disfarçados pelos traços do rosto que eu pretendia marcar nela, e imediatamente encontrei a solução; compreendi de repente como devia dirigir meu buril para aproveitar da forma mais vantajosa a estrutura da pedra.
Até aquele momento tinha me sentido subjugado por uma multidão de impressões fantásticas e por figuras de sonho, sem saber muitas vezes se eram ideias ou sensações, e de repente vi que era senhor e dono de um império.
Problemas de cálculo que antes eu poderia solucionar somente assinalando-os no papel estavam se tornando simples dentro de minha cabeça, os elementos caindo cada qual em seu lugar, como os componentes de um “puzzle”. Tudo isso acontecia por uma nova capacidade que tinha despertado dentro de mim, a de ver e guardar exatamente o que eu estava precisando naquele momento: algarismos, formas, objetos ou cores. E em se tratando de questões que não podiam ser resolvidas com a ajuda de instrumento algum — como problemas filosóficos e outros — a visão era substituída pelo ouvido, e ouvia a voz de Schemajah Hillel dando-me as explicações.
Consegui fazer descobertas bastante estranhas.
Coisas que antes tinham mil vezes penetrado em meus ouvidos sem que eu prestasse a menor atenção — pois para mim nada mais eram que palavras sem sentido — estavam agora assumindo uma forma de valor inestimável, dentro das mais recônditas fibras de meu ser; coisas que eu tinha “decorado” agora se transformavam em minha “propriedade” e eu as assimilava. O mistério da formação das palavras, que nunca antes eu podia ter imaginado, estava desvendado em frente de meus olhos.
Todos os mais “nobres” ideais da humanidade que até então tinham parecido elevados demais, com sua aparência de íntegros conselheiros comerciais, o peito repleto de condecorações do pathos, estavam agora retirando suas máscaras ridículas e pedindo desculpas: eles não passavam de mendigos, e assim mesmo instrumentos de uma trapaça ainda mais velhaca.
Estaria eu sonhando? Tinha eu realmente falado com Schemajah Hillel?
Estiquei a mão até a cadeira ao lado de minha cama.
Era verdade: a vela que Schemajah tinha me dado estava lá. Senti-me alegre como uma criança no Natal quando percebe que o lindo fantoche é real, e afundei novamente a cabeça no travesseiro.
Como um cão de caça fui seguindo o rasto dos enigmas espirituais que estavam me cercando como um cerrado espesso.
Tentei então relembrar meu passado até o ponto onde paravam as minhas memórias. Pensei que chegando lá, poderia descortinar de uma só vez aquela parte de minha vida que continuava envolvida na sombra por alguma estranha fatalidade.
Apesar de todos os meus esforços não conseguia prosseguir além do instante em que me via de pé no pátio escuro do edifício, olhando através do portão para a venda do belchior Aaron Wassertrum, como se eu tivesse ficado lá, durante cem anos, gravando e polindo pedras, sem nunca ter tido uma infância.
Estava tentando abandonar minha exploração do passado quando percebi de repente, com clareza inesperada, que se o caminho principal dos acontecimentos, que era largo e reto, parava em frente daquele portão, assim não era para muitas trilhas menores que sempre tinham acompanhado o caminho principal sem que dispensasse a elas a menor atenção. “De onde vem o conhecimento que deixa que você hoje ganhe sua vida?” Uma voz gritava dentro de meus ouvidos. “Quem foi que ensinou você a lapidar e gravar pedras, e tudo o mais? Ler, escrever, falar. . . e comer. . . e andar, respirar, pensar e sentir?”
Segui então a indicação daquele conselheiro secreto e comecei sistematicamente a subir pelo curso de minha vida.
Obriguei-me a refletir numa sucessão ininterrupta de encadeamentos invertidos. O que aconteceu naquele instante? Qual foi o ponto de partida disso? O que aconteceu antes? E assim por diante.
Voltei mais uma vez a me encontrar debaixo do portão… Então, aqui estou outra vez. Sabia que era suficiente dar um pequeno salto no vazio para transpor o abismo que me separava do esquecido — porém neste ponto surgiu uma imagem em que eu não tinha reparado antes, durante toda aquela peregrinação através do tempo: Schemajah Hillel passou sua mão sobre meus olhos, exatamente da mesma maneira como o fizera antes, em seu quarto.
Tudo sumiu. Sumiu ao ponto de continuar a exploração.
Conseguira um único benefício durável — a noção de que a sucessão dos acontecimentos de uma vida não passam de um beco sem saída, apesar de parecer uma estrada larga e transitável. São as pequenas trilhas perdidas que levam de volta à pátria perdida: são as mensagens gravadas em nosso corpo em letras microscópicas, quase invisíveis, e não as grandes cicatrizes deixadas pelos atritos com a vida, que trazem as soluções dos derradeiros mistérios.
Da mesma forma como eu poderia encontrar o caminho que reconduz aos dias de minha mocidade, seguindo o alfabeto da letra Z até a letra A, para chegar ao ponto em que comecei a aprendê-lo na escola — eu sabia agora que poderia também penetrar naquela pátria longínqua que se encontra além dos pensamentos.
Um mundo de trabalho desabava sobre meus ombros. Pensei de repente que também Hércules tinha, por um instante, carregado a verdade dos céus sobre sua cabeça e entendi o sentido misterioso da lenda. Se Hércules tinha conseguido livrar-se por meio de uma astúcia, dizendo ao gigante Atlas: “Deixe que eu envolva minha cabeça num pano, para que este peso horrível não a machuque”, quem sabe, existia algum caminho escuro que pudesse livrar-me daquele obstáculo.
Fui assaltado por uma dúvida horrível: a de confiar mais uma vez, cegamente, na ordem de meus pensamentos. Endireitei-me, vedei os olhos e os ouvidos com os dedos para não ser mais distraído pelos meus sentidos. Para extinguir até os mínimos pensamentos.
Minha vontade, porém, desfez-se pela mesma lei ferrenha: não podia afastar um pensamento a não ser por meio de outro pensamento, e tão logo um pensamento estivesse extirpado, o próximo alimentava-se de seus restos. Procurei refúgio na circulação rápida de meu sangue, mas eles me perseguiram; es-condi-me entre as batidas de meu coração, mas também ali eles me encontraram em poucos instantes.
A voz amiga de Schemajah Hillel veio me socorrer mais uma vez, e me disse: — Fiques em teu caminho, não saias dele! A chave da arte do esquecimento pertence a nossos irmãos que caminham pela senda da morte. Tu, porém, foste fecundado pelo espírito da vida.
O livro Ibbur apareceu em minha frente e nele chamejavam duas letras: a que representava a mulher gigantesca, cuja pulsação parecia um sismo — e a outra, muito distante, o Hermafrodita no trono de nácar, com uma coroa de madeira vermelha sobre a testa.
Finalmente Schemajah Hillel passou, pela terceira vez, sua mão sobre meus olhos e adormeci.