Zimmer (Índia) – Veda

Heinrich Zimmer

Excertos de “Filosofias da Índia” (Ed. Palas Athena), de Heinrich Zimmer

Ao leitor não familiarizado com a cronologia dos documentos indianos, relataremos sucintamente que os quatro Veda (Rig, Yajur, Sama e Atharva) contêm os hinos e os encantamentos mágicos das famílias arianas pastoris que entraram na Índia pelas montanhas do noroeste durante o segundo milênio A.C, época aproximada em que os aqueus (com quem estavam de certo modo aparentados e cuja língua se assemelhava ao sânscrito védico) chegavam à Grécia. Os hinos védicos são o monumento religioso e literário mais antigo existente da assim chamada família de línguas indo-europeias, abrangendo todas as literaturas das seguintes tradições: céltica (irlandês, galês, escocês, etc), germânica (alemão, holandês, inglês, norueguês, gótico, etc), itálica (latim, italiano, espanhol, francês, romeno, etc), grega, báltico-eslávica (antigo prussiano, letão, russo, tcheco, polonês, etc.), anatólia (armênio, antigo frígio, etc), iraniana (persa, afegã, etc.) e indo-iraniana (sânscrito, páli e as línguas modernas do norte da Índia como o hindi, bengali, sindi, panjabi e gujarate, bem como a língua falada pelos ciganos). Muito dos deuses, crenças e observâncias da época védica estão em estreito paralelo com os tempos homéricos. Os hinos parecem ter se fixado na sua forma atual cerca de 1500-1000 A.C.

Entretanto, o termo Veda não compreende apenas essas quatro coleções de hinos, mas também um grupo de composições em prosa apendiculados às mesmas, conhecido por Brahmana que, tendo sido redigido nos séculos imediatamente posteriores, representa uma época de meticulosa análise teológica e litúrgica. Os Brahmana contêm longas e pormenorizadas discussões acerca dos elementos e conotações do sacrifício védico, bem como alguns fragmentos de inestimável valor dos antiquíssimos mitos e legendas árias.

Após o período dos Brahmana veio o das Upanixades, que desabrochou no oitavo século A.C. tendo seu apogeu no século de Buda (aprox. 563-483 A.C). Estes períodos são comparáveis às datas da filosofia grega, começando com Tales de Mileto (625-546 A.C.) e culminando nos diálogos de Platão (427-347 A.C.) e as obras de Aristóteles (384-322 A.C).

Raimon Panikkar

Abordamos por vezes o Veda como se fosse um equivalente homeomórfico da Bíblia, ainda que longínquo. Mas notemos, para evocar a palavra mais próxima do que denominamos uma interpretação, que a mimamsa, a interpretação mais antiga e de certa maneira oficial do Veda, é ateia. Nenhuma concepção, nesta ocorrência, de um Deus que inspira ou que revela. A princípio estas palavras, aqui, são impróprias. A revelação védica não é portanto o fato de um Deus que revela, mas é o Veda enquanto tal que é revelação.

Durante mais de mil anos, o Veda jamais foi consignado por escrito; ele emergiu de uma tradição estritamente oral. Era interdito transcrevê-lo. Interdito mesmo escutá-lo para aqueles que não eram iniciados. Ora, nota curiosa, há bem menos erros na tradição oral do Veda que em uma tradição escrita. Por exemplo, a expressão fônica faz com que não se possa confundir uma vogal longa com uma vogal curta, ao passo que o escrito pode facilmente comportar tais erros.

O termos técnico para designar a autoridade do Veda é “apaurusheya, o que quer dizer “sem autor” (“sem um homem atrás”). Pois o Veda não tem autor. Ora veja que certos indólogos europeus, cedendo a um julgamento de pura superficialidade, ridicularizam o valor da “apaurusheyatna”, do que é “sem autor”, em o comparando à pretendida dignidade da Bíblia da qual dizemos que é a obra de um autor que teria produzido estes escritos sob a inspiração divina. Isto nos mostra que a noção de “revelação” própria ao monoteísmo não poderia se aplicar ao Veda, pois o que aí está manifestado é tão primordial que não pode ser posto à crédito de um “autor” (um Deus que revela e se revela): são palavras mesmas que são revelação.

O “sem autor” significa portanto “as palavras são primordiais”, de sorte que não se poderia compreendê-las como um dedo que designaria algo, ou uma pessoa que vos diria: esta palavra quer dizer isto ou aquilo. Não a palavra é imediata, sem o intermediário de um autor que disto nos explicaria o sentido. Como? Por outras palavras? O Veda nos põe em contato com a realidade; é um símbolo de ordem verdadeiramente primordial. Lembremo-nos da frase védica citada: “No princípio era a Palavra”… Para o hinduísmo, em consequência, ou melhor para o vedismo, o Veda não é a revelação de um Deus, mas é revelação, a Palavra primordial.

Shankara o disse muitas vezes: mesmo se um milhar de shruk (do Veda) dissessem que o fogo não queima, não creria. O valor do Veda não está cortado de uma experiência pessoal que vos põe em contato imediato com o real. Todas as interpretações portam sobre o dado imediato da Palavra. Tu crês ou tu não crês, e se tu não crês não há não há nenhuma autoridade exterior às palavras que possam te convencer. As palavras mesmas são sacramentos, e se não aí entras , então que seja, aí não entras. A experiência é capital. É para isso que a comparação entre as religiões não pode se fazer e presta-se a mal-entendidos se não se considera senão um só aspecto, ou se se entenda compreender a visão ou a filosofia de uma religião dada por meio das categorias de uma outra. Não há zona neutra de onde se possa comparar outras religiões.

 

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