Poimandres 4-6

4 A essas palavras, ele mudou de aspecto e, subitamente, tudo se abriu diante de mim num momento, e vi uma visão sem limites, tudo tornou-se luz, serena e alegre, e a tendo visto, dela encantei-me1 . E pouco depois, surgiu por sua vez2 , uma obscuridade dirigindo-se para baixo, assustadora e sombria, que se enrolou em espirais tortuosas, semelhante uma (serpente)3 , ao que me pareceu. Depois esta obscuridade transformou-se numa espécie de natureza úmida, agitada de uma maneira indizível e exalando um vapor, como do fogo sai, e produzindo uma espécie de som, um gemido indescritível. Depois dela se lançou um grito de apelo, sem articulação4 , tal que o comparei a uma voz de (fogo)5

5 apesar de que, saindo da luz …, um Verbo santo veio cobrir6 a Natureza, e um fogo sem mistura lançou-se fora da natureza úmida para o alto em direção à região sublime; era leve e vivo, e ativo ao mesmo tempo; e o ar, sendo leve, sucedeu ao sopro ígneo7 , elevando-se até o fogo a partir da terra e da água, de sorte que parecia suspensa ao fogo; pela terra e pela água, permaneciam no mesmo lugar estreitamente misturadas juntas, se bem que não se percebesse (a terra) aparte da água: e elas estavam incessantemente em movimento sob a ação do sopro do Verbo que se colocara8 acima delas, ao que percebia a orelha9 .

6 Então disse Poimandres: “Compreendeste o que esta visão significa?” E eu: “Eu o saberei”. — “Esta luz” disse ele” sou eu, Noûs, teu Deus, aquele que existe antes da natureza úmida que apareceu fora da obscuridade. Quanto ao Verbo luminoso saído do NOÛS, é o filho de Deus.” “Quem então?”, disse eu. -“Conheça o que quero dizer através do que em ti vê e ouve (o teu íntimo), é o Verbo do Senhor, e teu Noûs é o Deus Pai; não são separados um do outro, pois esta união é que é a vida.” — “Eu te agradeço” — disse. — “Agora fixa teu espírito sobre a luz e conhece isto”.


NOTAS

1 Sobre esta transformação do Noûs, leia Franz Cumont.
2 Ou, “reunida em um canto”, mas este sentido me parece muito menos provável.
3 Serpente e obscuridade.
4 Há aqui oposição entre o caráter brutal elementar do clamor profundo proveniente do Chaos e a santidade do Logos, que é ao mesmo tempo “palavra denotando uma razão” (e por aí mesmo em oposição da “asynarthros boe”) e princípio ativo, como o Verbo joanico. Mesma oposição entre “phone”, voz dos animais, voz sem razão, e logos, linguagem racional.
5 Se se aceita a conjectura de Reitzenstein — pyros para photos —, não se manteria esta “voz de fogo” que como uma pura imagem, pois não é questão ainda de fogo real no texto. O elemento ígneo (pyr akraton) só se destaca da natureza úmida depois da intervenção violenta do Logos. A “voz do fogo” desempenha uma papel muito particular nos Oráculos Caldaicos, mas o fogo é nos Oráculos o elemento divino por excelência. Se se admite, com Reitzenstein, que existe aqui uma aliança entre pyr e skotos, se levará em conta então a Pistis Sophia.
6 “Assaltar” (Dodd). Com efeito, epithenai com o dativo indica talvez uma ação violenta. A natureza primordial é como em gestação, ela geme, clama, demanda socorro (boe), até que o contato do Verbo a libera de seu fruto, o pyr akraton. Entretanto poderia se traduzir também “macular”.
7 pneumati pode se estender, nesta cosmologia, o éter, sopro ígneo, não é distinguido do fogo, como na cosmologia estoica onde o pneuma, que penetra tudo, tem as propriedades do fogo.
8 Ou “foi portado”.
9 “ao alcance da voz”; ou talvez “em obediência”.

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