Jean Delumeau — Dante e o Pseudo-Dionísio
Excertos de “O que sobrou do paraíso?”
DANTE E O PSEUDO-DIONÍSIO
Dante construiu seu Paraíso de maneira deslumbrante a partir de A hierarquia celeste do Pseudo-Dionísio. De fato, aprendera com este que os sete céus planetários, depois, acima deles, o céu das estrelas fixas e o do “primeiro motor” (circundado pelo empíreo), são habitados pelos nove coros angélicos e que as diferentes categorias de espíritos celestes servem de mediadores para fazer vir de cima para baixo a força divina que move os astros. A Antiguidade pagã atribuía aos principais deuses do Olimpo o governo dos sete planetas e o controle das influências que daí decorrem sobre os humanos. O Areopagita contribuiu, mais que qualquer outro, para cristianizar esse mito, permanecendo no interior do universo que o astrônomo e geógrafo grego Ptolomeu descrevera.
No Convívio (O banquete), obra inacabada redigida em 1304-7, Dante, de acordo com a doutrina do Pseudo-Dionísio, já repartira a condução dos nove céus entre os nove coros da hierarquia celeste, mas por vezes afastando-se ligeiramente da nomenclatura do Areopagita. Na época, ele ainda não estudara em profundidade as obras de santo Tomás de Aquino. Havia preenchido essa lacuna quando compôs A divina comédia, terminada pouco antes de sua morte, em 1321, e, como santo Tomás de Aquino, conformou-se pontualmente no Paraíso à nomenclatura herdada do Pseudo-Dionísio. No canto X (v. 115-7), Beatriz convida Dante a olhar “a chama desse círio que, embaixo, em sua carne, mais intimamente viu a natureza dos anjos e seu ofício”. Esse “círio” é Dionísio. Mais adiante, no canto XXVIII (v. 97-132), Beatriz, relembrando a hierarquia dos espíritos celestes e a dos diferentes céus, sublinha:
“Dionísio com tal desejo pôs-se a contemplar essas ordens (angélicas) que as nomeou e distinguiu como eu faço”. A ascensão ao paraíso realizada por Dante efetua-se realmente na esteira do Areopagita, segundo um esquema que combina a astronomia de Ptolomeu cristianizada, a hierarquia angélica e a dos eleitos:
||Níveis do céu|Espíritos celestes — Eleitos||l° céu: Lua|Anjos — Os que foram impedidos de observar seus votos||2° céu: Mercúrio|Arcanjos — Os que fizeram o bem pela reputação ou pela honra||3° céu: Vênus|Principados — Os que foram dominados pelo amor||4° céu: Sol|Potestades — Os grandes doutores||5° céu: Marte|Virtudes — Os combatentes da fé||6° céu: Júpiter|Dominações — Os príncipes justos e piedosos||7° céu: Saturno|Tronos — Os grandes contemplativos||8° céu: das estrelas fixas|Serafins e querubins — Triunfo do Cristo; apoteose da Virgem, são Pedro, são Tiago e são João||9° céu (primum mobile ou céu cristalino)|Os nove coros angélicos reunidos em torno de Deus Empíreo||Empíreo = Rosa celeste|Os bem-aventurados aparecem revestidos dos corpos que terão no Juízo Final||
Uma das invenções mais geniais de Dante é ter imaginado, na parte mais elevada do céu, o empíreo como uma rosa mística. Semelhante a um anfiteatro “com mil degraus”, essa rosa é formada de todos os eleitos que, gozando do privilégio de bilocalização, têm também a faculdade de estar presentes nas diversas esferas celestes que o poeta e Beatriz atravessam, elevando-se de céu em céu. Segundo o princípio hierárquico definido pelo Areopagita, Dante quis significar, assim, que nem todos os eleitos e espíritos celestes têm a mesma capacidade de beatitude — daí seu maior ou menor afastamento em relação ao centro da rosa, e sua distribuição vertical entre os diversos céus -, mas que a capacidade de cada um é perfeitamente preenchida. No mesmo espírito, santo Tomás de Aquino afirmara: “Embora haja apenas um único lugar espiritual, há diversos graus de aproximação em relação a ele”.