Izutsu (ST:141,148-149) – A Água da Vida

No capítulo anterior, vimos que a Misericórdia de Deus permeia todos os seres em todos os níveis do Ser. Sabemos também que essa é outra maneira de dizer que o Ser do Absoluto permeia todos os seres que podem ser descritos como “existentes” e que a Forma do Absoluto percorre todo o mundo do Ser. Essa tese, nessa forma geral, é a mesma que foi discutida no Capítulo IV sob a palavra-chave tashbîh. No presente capítulo, o mesmo problema geral será reconsiderado de um ponto de vista particular.

A palavra-chave a ser considerada como o ponto de partida da discussão nesse contexto específico é latif, que significa aproximadamente “sutil”, “fino” e “delicado”. Latif é o oposto de kathif. Essa última palavra conota a qualidade de coisas “espessas”, “densas” e “grosseiras”, ou seja, aquelas que se caracterizam pela materialidade densa. Como o oposto semântico disso, latif significa a qualidade das coisas cuja materialidade está em um grau extremo de rarefação e que, portanto, são capazes de permear as substâncias de outras coisas, difundindo-se nelas e misturando-se livremente com elas. O fato de essa palavra, latif, ser um dos Nomes Divinos é, para Ibn Arabi, extremamente significativo.

O Nome latif ou “Sutil”, com essa conotação específica, representa o Absoluto como uma Substância (jawhar) que, imaterial e invisível, permeia e impregna todo o mundo do Ser, assim como uma cor permeia as substâncias. Essa Substância, que é infinitamente variável, percorre tudo e constitui sua realidade. Todas as coisas individuais são chamadas por seus próprios nomes particulares e, portanto, são distinguidas umas das outras como algo “diferente”, mas essas diferenças são meramente acidentais. Vistas do ponto de vista da Substância invisível que percorre o mundo inteiro, todas as coisas são, em última análise, uma só e a mesma. Vamos ouvir o próprio Ibn Arabi ao explicar esse ponto de sua maneira peculiar…


Para Ibn Arabi, o símbolo mais apropriado da vida é a “água”. A água é a base de todos os elementos naturais, e ela flui e penetra até mesmo nos cantos mais estreitos do mundo. “O segredo da Vida se difundiu na água”. E tudo o que existe tem um elemento aquoso em sua própria constituição, porque a água é o mais básico de todos os elementos. Tudo está vivo por causa da “água” que contém. E o elemento “aquoso” contido em todas as coisas, em graus variados, corresponde à Ele-dade [He-ness] do Absoluto que, como Actus, percorre tudo.

É significativo que Ibn Arabi mencione “água” nesse sentido no início do capítulo que trata da “sabedoria do Invisível” simbolizada por Jó. Affifi aponta de forma bastante apropriada, nesse contexto, que Jó é, para Ibn Arabi, um símbolo de um homem que se esforça para obter “certeza” (yaqin) sobre o mundo do Invisível. A dor excruciante pela qual Jó passa não é, portanto, uma dor física, mas o sofrimento espiritual de um homem que se esforça, mas não consegue alcançar a “certeza”. E quando Jó implora a Deus que remova dele essa dor, Deus ordena que ele se lave na água corrente sob seus pés. Aqui, a “água” simboliza a Vida que corre por todas as existências, e “lavar-se na água” significa mergulhar na “água da existência” e, assim, conhecer a realidade da existência.

Assim, a Água da Vida está fluindo eternamente através de tudo. Cada coisa é em si mesma uma existência única e, ainda assim, está imersa no oceano ilimitado da Vida, juntamente com todas as outras existências. No primeiro aspecto, tudo é único e singular, mas no segundo aspecto, tudo perde sua identidade em meio à “água” que flui através de tudo.

 

Toshihiko Izutsu (1914-1993)