Eliade
Em muitas culturas, acredita-se que a separação do corpo e da alma, causada pela primeira morte, acompanhou-se de uma modificação estrutural em todo o cosmos: houve uma modificação na localização do céu, e os meios de acesso a ele foram interrompidos (a árvore, o cipó ou a escada que ligavam o céu à terra foram cortados ou a montanha cósmica foi aplainada). Desde então, os deuses não foram diretamente acessíveis aos homens como antes, afastaram-se para a parte mais alta do céu; apenas xamãs ou curandeiros têm acesso a eles, através do êxtase, o que quer dizer “em espírito”.
Há também a crença segundo a qual, por ocasião da Criação, Deus dotou o homem de alma, enquanto a terra forneceu-lhe o corpo. Com a morte, os dois elementos voltam a se desintegrar: o corpo volta à terra, e a alma retorna ao seu autor celestial.
Tais analogias entre cosmogonia, antropogonia e a morte mostram, por assim dizer, a potencialidade “criadora” do ato da morte. Digo isso porque é bem conhecida a concepção das sociedades arcaicas segundo a qual a morte somente é um fato real, consumado, quando as cerimônias funerárias foram devidamente cumpridas. Em outras palavras, a morte fisiológica é apenas o sinal de que devam ser realizadas novas atividades a fim de que se “crie” uma nova identidade para o morto. O corpo tem que ser tratado segundo um ritual específico para que não seja reanimado pela mágica e, dessa forma, se torne agente de atos maléficos para a comunidade. Além disso, existe uma função mais importante do ritual: a alma deve ser guiada à sua nova morada e ser ritualmente integrada na comunidade de seus habitantes. Infelizmente, conhecemos muito pouco sobre o simbolismo religioso das cerimônias funerárias entre as sociedades arcaicas e tradicionais. Compreendemos a extensão de nossa ignorância quando por sorte um antropólogo contemporâneo tem a chance de presenciar e ter quem lhe explique um ritual funerário. Foi o que aconteceu ao antropólogo Reichel-Dolmatoff, que assistiu em 1966 ao enterro de uma jovem da tribo Kogi da Serra Nevada de Santa Maria. A descrição publicada por ele é muito pouco divulgada; por isso merece com toda certeza ser resumida aqui.
Depois de escolhido o lugar da sepultura, o xamã (máma) executa uma série de gestos rituais e declara: “Aqui é a aldeia da Morte; aqui é o templo da Morte; aqui é o ventre. Eu abrirei o templo. Ele está fechado e eu vou abri-lo”. Em seguida, ele anuncia: “O templo está aberto”, mostra aos homens o lugar onde eles devem abrir a cova. No fundo da cova eles colocam pedras verdes, moluscos e um caramujo. Após isso, o xamã tenta em vão levantar O corpo, dando a impressão de que é muito pesado; somente consegue levantá-lo na nona tentativa. O corpo é colocado com a cabeça voltada para o leste e o xamã “fecha o templo”, ou seja, enche a cova de terra. Seguem-se outros movimentos rituais em redor da sepultura e, finalmente, todos voltam à aldeia. Essa cerimônia dura mais ou menos duas horas.
Como Reichel-Dolmatoff observou, quando um arqueólogo do futuro escavasse a sepultura, encontraria um esqueleto deitado sobre algumas pedras e conchas e de cabeça voltada para o leste. Jamais se poderia recuperar os ritos e, acima de tudo, a ideologia religiosa neles implícita. Além do mais, para um observador estranho àquela cultura de hoje, o simbolismo da cerimônia permanece ininteligível se ele ignora a totalidade da religião Kogi. Isso porque, conforme observa ReichelDolmatoff, a “aldeia da Morte” e “o templo da Morte” são “verbalizações” do conceito de cemitério, enquanto a “casa” e o “ventre” são “verbalizações” do conceito de sepultura (isso explica a posição fetal do corpo, deitado sobre o lado direito). A essa cerimônia seguem-se “verbalizações” das oferendas como “alimento para o morto” e pelo ritual de “abrir” e “fechar” o “ventre-casa”. Uma purificação final termina a cerimônia.
Devo acrescentar que os Kogi identificam o mundo – ventre da Mãe Universal – com cada aldeia, cada templo, cada habitação e cada sepultura. Quando o xamã levanta o cadáver nove vezes, pretende fazer com que o corpo regresse ao estado fetal, completando os nove meses de gestação ao reverso. Além disso, uma vez que se assimila a sepultura do mundo, as oferendas funerárias têm uma significação cósmica. Além do mais, as oferendas, “comida para o morto”, têm também um sentido sexual, pois costuma-se associar, em mitos e sonhos e na cerimônia de casamento, o ato de comer ao ato sexual; consequentemente, as oferendas funerárias constituem am sêmen que fertiliza a Mãe Universal. Os moluscos têm também um simbolismo bastante complexo e que não é simplesmente sexual. Eles representam os membros vivos da família, enquanto o caramujo representa o “esposo” da morta; se a concha não é encontrada no túmulo, a jovem “pedirá um marido” ao chegar ao outro mundo, o que irá ocasionar a morte de um membro da tribo. [Eliade]
Maldiney
A morte não nos rouba senão aquilo que nos é caro: este ser-aqui. Ora este roubo do ente é a revelação mais aguda de seu ser. É na retirada e na perda, na eminente iminência do desparecer, que o indivíduo singular se mostra subitamente e eternamente insubstituível. Na morte, o si cessa de se mostrar em seus perfis como a unidade contingente de aspectos variados. Não precisamos mais afastá-lo para que ele esteja aí na proximidade. Seu afastamento tem em suspenso nossa abordagem. E sem que possamos tomar sobre um ponto de vista, nós o recolhemos tal como nele mesmo, em uma simplicidade transcendente a toda experiência, como a essência do ser perdido.
Ora os ritos funerários cumprem a mesma coisa no objetivo. Eles não recolhem a essência do morto no cálice de uma alma individual. “Trata-se de um luto comum à raça inteira” (Ésquilo). Os ritos funerários são os instrumentos do trabalho do luto. A interpretação hegeliana dela é tão sóbria e clara quanto apurada. A morte é um estado de coisa que “acontece pura e simplesmente” e faz do morto precisamente uma coisa. Abandonada como toda coisa à dissolução das forças materiais – que a ignoram. A família “faz de modo que o que aconteceu seja todavia uma obra, a fim de que o ser, o estado último, seja ainda algo de querido” (Hegel, fenomenologia do Espírito II, 353). Que a morte seja uma obra e logo faça acepção daquele que ela suprime, eis bem a intenção ao mesmo tempo formulada e preenchida do ato ritual. O rito é performativo. Ele cumpre neste mundo a operação de um outro mundo, que se encontra ligado nele… mas porque ele mesmo é conforme a sua lei. [Maldiney]