A ideia de uno como “o uno” ou “unidade primordial” foi desenvolvida por alguns filósofos pré-socráticos que consideraram o uno como a propriedade de tudo o que é, do universo em conjunto, quer dizer, enquanto uno ou unidade. Parmênides fundou grande parte da sua doutrina da verdade no conceito de uno. Com efeito, o que é uno não pode ser múltiplo, pois precisamente o uno se opõe ao múltiplo, que é o reino da ilusão e da opinião. O uno é a identidade pura, a pura simplicidade e a pura uniformidade. A especulação de Parmênides sobre o uno e a unidade foi continuada por Platão, o qual concebeu toda a ideia como unidade. A ideia é a unidade do múltiplo, pois na unidade da ideia reconhecesse e concentra-se a multiplicidade. Assim, toda a ação generosa é generosa porque participa do ser generoso, que é uno: a ideia do ser generoso ou da generosidade é a unidade de muitos atos generosos. Em Platão adquire maturidade uma das questões filosóficas fundamentais: a chamada questão do uno e do múltiplo, que tem diversos aspectos. Por exemplo, a ideia é una, mas pode perguntar-se é una porque participa da ideia do uno (em cujo caso há duas unidades) ou se é una sem participar da ideia do uno (em cujo caso não só há duas unidades, mas duas unidades separadas). Por outro lado embora cada ideia seja una, há uma multiplicidade de ideias, de modo que a ideia deve participar também da multiplicidade e ser simultaneamente una e múltipla. Platão tratou, especialmente no Parmênides, de resolver o problema do uno e da unidade desenvolvendo uma dialéctica da unidade. Esta começa com as hipóteses: “se o uno é”, “se o uno não é”. Se o uno é, ou o uno é uno ou o uno é ou o uno é e não é. Se o uno é uno e só uno, o uno não é nada mais, nem sequer ser. Se o uno é, o uno inclui o múltiplo do qual é unidade. Se o uno é e não é, o uno é também o outro, e então não é uno (quer dizer, o mesmo), etc. A intenção principal desta dialéctica da unidade é mostrar que a hipótese do uno em suas diversas formas conduz a excluir o ser ou negar o uno, de modo que não pode prescindir-se do uno. Deve advertir-se que esta dialéctica não exclui a unidade numérica, mas fundamenta-a no que se chamou “unidade metafísica”. Com efeito, metafisicamente falando, o que importa é, como diz Platão, não que um ente seja um ente, mas que seja uno, não um boi, mas o boi uno. Nas análises de Aristóteles transparecem diversos modos de dizer uno que obrigam a considerar uno como um conceito analógica.. Com efeito, diz-se de algo que é uno, porque é indivisível na medida em que carece de partes; neste caso a unidade equivale à simplicidade. Diz-se, por outro lado, de algo que é uno, porque, embora esteja composto de partes, a soma das partes constitui a unidade. Em ambos os casos trata-se de unos, mas a primeira unidade é diferente da segunda. Estas duas espécies fundamentais de ser uno são similares, ou talvez idênticas, às logo chamadas unidades físicas, a primeira, indivisível e simples, como um espírito; a segunda, composta e divisível, mas deixando de ser unidade quando é efetivamente dividida. A questão de como é possível conceber o uno como absolutamente uno, sem nenhuma pluralidade, e ao mesmo tempo conceber a possibilidade de que o uno emana a pluralidade foi um dos grandes problemas postos por Platão que ocuparam os neoplatônicos. Para estes e, em especial, para Plotino, o uno é a hipóstase originária, a primeira e superior realidade, o que possui em si mesmo o seu haver e, por conseguinte, pode ser chamado com toda a propriedade a substância. Mas seria errôneo confundir o uno, como às vezes sucede, com a expressão lógica do conjunto das realidades, ou com este conjunto mesmo enquanto unidade orgânica. A noção plotiniana de uno apoia-se muito amiúde na ideia (ou na suposição) de que o princípio é diferente dos principiados. O ser não é nenhum dos seres; é anterior a todos no duplo sentido de que começo e fundamento. É revelador que os parágrafos que Plotino escreve para dilucidar esta questão tenham um carácter predominantemente metafóricos: “é potência de tudo; se ele não existe nada existe, nem os seres, nem a inteligência, nem a vida primeira, nem nenhuma outra. Encontra-se acima da vida e é causa dela; a atividade da vida em que consiste todo o ser não é primeira; brota do uno como de um manancial. Imaginem um manancial que não tenha ponto de origem; ele dá a sua água a todos os rios, mas nem por isso se esgota. Permanece, apascível, ao mesmo nível de sempre. Os rios dele brotados confundem imediatamente as suas águas antes de cada qual seguir o seu próprio curso. Mas já cada qual sabe aonde o arrastará o seu fluir. Imaginem também a vida de uma árvore imensa; a vida circular através da árvore inteira. Mas o princípio da vida permanece imóvel; não se dissipa em toda a árvore, antes segue nas raízes. Este princípio proporciona à planta a vida nas suas manifestações múltiplas, com ele mesmo permanece imóvel e, sem ser múltiplo, é princípio desta multiplicidade”. (ENÉADAS). O uno é, portanto, fonte de toda emanação, origem da inteligência e da alma, mas o seu originar-se não é um perpétuo fazer-se, mas um ser já feito, que representa ao mesmo tempo o princípio e a recapitulação das coisas. Deste germe nasce tudo, mas os seres diferentes a que dá origem não são desenvolvimentos inesperados ou azarentos de uma semente, mas derivações de um princípio que contém já quanto há de ser no curso de seu desenvolvimento. Pois os seres são, em rigor, imagens desta unidade que é simultaneamente culminação e base, origem e finalidade, ponto em que tudo se recolhe e ao qual tudo remonta, mas como uma espécie de recolhimento mediato, pois não há uma derivação direta de qualquer ser ao uno, mas o encaixe de cada coisa com a sua unidade superior. O recolhimento do real é, por conseguinte, o recolhimento no uno por um processo que não pode classificar-se de exclusivamente lógico nem de exclusivamente temporal, porque é como a absorção na eternidade de um tempo que é a imagem do eterno e que, portanto, se encontra no eterno no sentido em que o precipitado se encontra em seu absoluto princípio. Daí a dificuldade de adscrever ao uno qualquer determinação positiva e a tendência para o considerar como “tudo e nada”. Pois falar do uno dizendo que é isto e aquilo é recorrer à metáfora. E daí também a caraterística vacilação nas especulações sobre o uno entre um conceito de unidade como identidade e um conceito de unidade como harmonia. A primeira tendência acaba por suprimir o real e aniquilar a própria noção de hipóstase. A segunda não nega a limitada subsistência do particular e quer precisamente salvá-la. Ambas as noções se entrelaçam em qualquer sistema emanatista: uma predomina quando se fala do princípio primeiro, a outra, quando se fala daquilo que o princípio contém e reflete em si mesmo como sua imagem. Os escolásticos ocuparam-se com frequência do problema da natureza do uno e da sua unidade. S. Tomás começa por perguntar a si próprio se a unidade adiciona algo ao ser e manifesta que assim parece acontecer, porquanto 1. Tudo o que pertence a um gênero determinado se agrega ao ser (e o uno é um gênero determinado); 2. O ser pode dividir-se em uno e múltiplo, e 3. Dizer “este ser é uno” não é uma tautologia, como o seria se o uno não agregasse nada ao ser. Mas como já indicou o Pseudo-Dionísio, nada há do que existe que não participe da unidade. Pode concluir-se que a unidade não adiciona ao ser nada real, mas que separa dele apenas a ideia de divisão. O uno é o ser não dividido, de modo que o ser e o uno são convertíveis. Como o ser de uma coisa comporta a sua indivisão, o seu ser e a sua unidade são o mesmo (implicam-se mutuamente). É preciso distinguir, no ente, entre a unidade numérica e o uno como idêntico ao ser; só o uno numérico adiciona algo ao ser, quer dizer, um atributo pertencente ao gênero da quantidade. O conceito metafísico de uno é o que compete a Deus, quando se diz que Deus é Uno. Deus é uno pela sua simplicidade, pela sua ilimitada perfeição e pela unidade do mundo. Além disso, Deus é soberana ou maximamente uno e indivíduo, não estando dividido nem em ato nem em potência, e nisto distingue-se a unidade de Deus da de outras substâncias. As discussões modernas em torno do conceito do uno e da unidade fundavam-se em considerações gnoseológicas; em vez de partir do conceito de uno e da unidade, partiam da questão de como pode reconhecer-se que algo é uno e discutiam amiúde se a identidade se baseia na unidade substancial ou se esta é uma ideia vazia. Os empiristas tendiam a excluir a ideia de unidade substancial, mas Leibniz tratou de restabelecer tal ideia na sua a teoria monadológica. Também neste ponto Kant tratou de superar a oposição entre uma concepção puramente empírica e genética da unidade e uma concepção exclusivamente racional e metafísica. O conceito de unidade é, segundo Kant um dos conceitos do entendimento ou categorias, é o conceito que corresponde ao juízo universal, pois neste toma-se um conjunto (todos) como um uno do qual se predica algo. A ideia de unidade pode portanto proceder da experiência. Mas não está justificada pela experiência. Por outro lado, a ideia de unidade como unidade do ser realíssimo transcende toda a experiência. A unidade não é um predicado transcendental das coisas, mas requisito lógico de todo o conhecimento. O conceito de unidade é ainda mais fundamental em Hegel. A dialéctica hegeliana da unidade é a da unidade em si e é negada pela pluralidade. Mas a negação da pluralidade dá lugar a uma síntese que é a unidade dos opostos. A ideia deste tipo de unidade encontra-se em vários autores anteriores a Hegel e a eles nos referiremos no artigo Oposição. Com efeito, sempre que se tentou encontrar um ponto de reunião e conciliação de opostos, surgiu uma ideia de unidade que havia sido já antecipada por Platão, mas que só Hegel desenvolveu sistematicamente, fazendo dela o primeiro princípio de toda a realidade. [WebDic]

Números e Geometria