amor cortês

Mircea Eliade

No amor cortês, pela primeira vez desde os gnósticos dos séculos II e III, eram exaltados a dignidade espiritual e o valor religioso da Mulher. Segundo vários estudiosos, os trovadores da Provença foram inspirados pelo modelo da poesia árabe da Espanha, que glorificava a mulher e o amor espiritual que ela desperta. Mas é preciso também levar em conta os elementos celtas, gnósticos e orientais, redescobertos ou reatualizados no século XII. Por outro lado, a devoção à Virgem — que domina essa mesma época — santificava indiretamente a mulher. Um século mais tarde, Dante (1265-1321) irá ainda mais longe: Beatriz — a quem ele conhecera ainda mocinha e reencontrara já como esposa de um fidalgo florentino — é divinizada. Proclama-a superior aos anjos e aos santos, imune ao pecado, quase comparável à Virgem. Beatriz torna-se uma nova mediadora entre a humanidade (representada por Dante) e Deus. Quando Beatriz está prestes a aparecer no Paraíso terrestre, exclama alguém: “Veni, sponsa, del Líbano” (Purgatório, XXX, 11), o famoso trecho do Cântico dos Cânticos (IV, 8) que a Igreja havia adotado, mas que só era entoado em honra da Virgem ou da própria Igreja. Não se conhece outro exemplo tão esplêndido da divinização de uma mulher. Evidentemente, Beatriz representava a teologia e, portanto, o mistério da Salvação. Dante escrevera a Divina Comédia para salvar o homem, trazendo a sua transformação não em amparo de teorias, mas aterrorizando e fascinando o leitor com as visões do Inferno e do Paraíso. Embora não fosse o único, Dante ilustra de maneira exemplar a concepção tradicional que afirma que a arte, a poesia sobretudo, é um meio privilegiado não apenas para comunicar uma metafísica ou uma teologia, mas também para despertar e salvar o homem. [Eliade]

Dicionário Medievo

(amour courtois, höfische Mínne) Termo criado em 1883 por Gaston Paris, o amor cortesão recebeu sua mais delicada expressão nas canções dos trovadores do século XII no Languedoc. A natureza real desse código altamente ritualizado de amor continua discutível; numerosas fontes foram sugeridas — a Ars Amatoria de Ovídio, a poesia hispano-árabe e o pensamento platônico, entre outras —, mas a linguagem e as imagens do amor cortesão refletem, acima de tudo, o ambiente feudal, palaciano, em que o conceito se desenvolveu.

Os protagonistas assumiram distintos papéis: o amante submetido à sua dama como o cavaleiro ao seu senhor, jurando leal e permanente serviço. Chamando a atenção para o seu pretz (“valor”) e valor (“coragem”) — ainda mais reforçados por seu nobre e puro amor —, ele solicitava mercê (“piedade”) e alguma recompensa. Embora a dama pudesse parecer a figura dominante nesse drama privado, ela estava obrigada pelas convenções a condescender com as solicitações razoáveis do cavaleiro, da mesma forma que um senhor estava obrigado a recompensar seus fiéis seguidores; se ela não oferecesse algum favor ou esperança, era tachada de cruel e sem coração. A natureza adúltera do amor cortesão tem sido muito debatida e frequentemente exagerada; há pouquíssimos casos em que a dama era explicitamente uma mulher casada. Entretanto, ela era quase sempre inatingível, em virtude de sua alta posição ou distância física e por medo da censura social; paradoxalmente, era a própria distância dela que dava valor ao paciente sofrimento do amante. Os merecimentos da amada podiam ser aumentados por mostrar mercê a um digno e merecedor pretendente; contudo, a dama que se submetia depressa demais era condenada.

A luta íntima do amante entre o seu desejo de satisfação imediata e sua consciência do valor moral implícito em batalhar pelo inatingível; entre as ambições pessoais e as restrições sociais externas; entre o estado auto-imposto de submissão e a necessidade irresistível de expressar dor e ressentimento: são essas antíteses que emprestam à poesia de amor cortesão sua tensão dramática e riqueza emocional.

O verdadeiro amor, ou Fin’amors, contrastava com os Fals’amors da maioria, caracterizado pela inconstância, a insinceridade e o ciúme mesquinho, o que os excluía da elite amorosa. O Fin’amors foi cada vez mais “cristianizado” em fins do século XII, quando a imagem do amante ansioso foi assimilada a um código de busca religiosa de Deus, em que as virtudes cristãs foram adquiridas através do serviço a Maria.

A tradição propagou-se do Languedoc até a Itália, influenciando o dolce stil nuovo (La Vita Nuova, de Dante), e na direção norte, onde se fundiu com a tradição alegórica francesa para produzir obras como Lancelot, de Chrétien de Troyes, e o Roman de la Rose, de Guilherme de Lorris. Outras respostas incluem o Parzival de Wolfram von Eschenbach, na Alemanha, Troilus de Chaucer e Confessio Amantis de Gower, na Inglaterra. [A mesma tradição está representada na literatura portuguesa pelo romance Amadis de Gaula, de Vasco de Lobeira (século XII).] [DIM]

Poesia