Raimon Panikkar — A FASCINAÇÃO DO BUDISMO
Excertos de sua apresentação ao livro O DESPERTAR DO BUDA
O ESPÍRITO DO BUDISMO
Esse é o espírito do budismo. O resto surgiu desse homem que nada quis, que não quis fundar nada, que não quis sequer reformar o bramanismo. Recordo-me de que por volta dos anos 50, em Samath, o mesmo lugar onde nasceu esse grande movimento, perguntei a uma monge da índia, budista teravâda, amigo íntimo meu, editor do Tripitaka em hindi (mais tarde seria reitor da Universidade de Nâlanda), a razão pela qual não havia budistas na índia, como poderia ocorrer que em toda a índia, a pátria do Buda, o budismo como religião não existisse; e o bhikkhu me olhou e disse: “Ah, é? Não há budistas’?” e me cortou a pergunta. Dizemos que não há budistas porque não há pessoas que se declarem budistas, porque o budismo como religião não existe na índia. Perdemos o espírito do budismo. A índia não tem budistas, segundo as nossas estatísticas, e segundo as nossas classificações não há budistas na índia. E o único monge budista que havia ficava surpreso com o fato de que era muito estúpido perguntar se na índia havia ou não budistas. E logo achamos estranho a proliferação da burocracia.
Ou se leva a sério o que as tradições humanas nos dizem do ponto de vista mais profundo e mais real ou estamos fazendo delas uma ideologia, um partido político ou até mesmo uma instituição. E certamente os budistas das estatísticas classificadoras estão fora da índia, com exceção talvez dos cerca de três milhões de neobudistas do Dr. Ambedkar, os quais, por razões sociais e políticas, para superar a escravidão das castas hindus, se “converteram” ao budismo, aceitaram o budismo como uma das grandes religiões, para poder libertar-se da ignomínia dos que não pertencem à casta e, assim, adquirir certa identidade. Houve, então, conversões em massa ao budismo, a um budismo que também faria o Buda sorrir. Trata-se de “refugiar-se” no Buda, como uma das três joias (sangha e dhamma são as outras duas) que tomam uma pessoa budista.
Mas refugiar-se no Buda não quer dizer abjurar o cristianismo ou o hinduísmo, ou outras coisas. Por que temos que ver tudo sempre segundo “nossas” categorias? Se o hinduísmo não tem fundador, o budismo tem um, ainda que Buda não funde nada, já que trata bem mais de um símbolo. Ele, que sorri quando se lhe formulam uma pergunta, que cala quando alguém faz algo mal feito. Buda, já ancião, estava no norte da índia; desce até a índia central porque ouviu que alguns irmãos maltratavam e desprezavam um monge que adoecera de uma dolência desagradável. Gautama vai até lá, cuida dele, e depois diz aos monges: “Monges, vós teríeis cuidado de mim! O que fazeis a qualquer pessoa, fazeis a mim.” Isso acontecia mais de quatro séculos antes que algumas palavras semelhantes fossem pronunciadas por um jovem rabino de outra tradição.
Falar do budismo, assim como falar de qualquer outra religião, exige respeito e certa devoção. O budismo não permite fazer dele apenas uma ideologia, explicar apenas umas tantas doutrinas, sejam de filosofia ou de lógica. Há toda uma ideologia budista, indiscutivelmente, mas o espírito, até mesmo o do mais sutil dos lógicos da tradição budista, Nagarjuna, é sempre guiado por aquilo que ele mesmo chamará de sua essência; o budismo tem uma, e, segundo a tradição mâhâyana, pode resumir-se numa só palavra, de difícil tradução, e ainda mais difícil de ser posta em prática: Mâhâkarunâ, a grande compaixão, compaixão, compadecer, padecer conjuntamente com todas as coisas que existem sem fazer nenhum tipo de discriminação. Descobrir o pathos da própria coisa e compartilhá-lo. Sunt lacrimae rerum, dizia Virgílio. Mâhâkarunâ, o grande Karunâ, a grande compaixão, é como a tradição mâhâyana resume a essência do budismo, mas não para deixar-me sofrendo, e sim porque havendo feito a experiência das quatro verdades fundamentais, se é que o sofrimento existe, esse sofrimento se origina, mas pode cessar e existe um caminho para sair dele. E para essa cessação a tradição budista utiliza a mesma palavra clássica de toda a ioga. Buda utiliza a palavra nirodha, e a cessação da dor corresponde à cessação do fluxo mental, do rio de pensamentos, da televisão interna que nos distrai e não permite que desfrutemos da verdade da vida. Yogas-citta-vritt-nirodhah diz o segundo sütra da yoga-sütra: ioga é a cessação dos processos mentais.
Qualquer abordagem do budismo que não chegue a tocar nessas fibras da compaixão universal, que não me leve a renunciar, como dirão os bodhisattvas, à minha salvação pessoal em favor de todos os seres vivos que talvez precisem ainda de minha ajuda, saberá muito pouco sobre o que significa o budismo. Um grande arhant (e eis aqui a ironia das grandes tradições budistas), havendo acabado sua vida terrena ascende ao nirvana, ao céu merecido, e seu grande desejo é ver o mestre e saber onde ele vive. Ascende, então, a todos os céus do nirvana, e poderia descrever as apsaras, ninfas e coisas preciosas que encontra antes de chegar ao sétimo selo. Ali as portas estão abertas e ele clama e busca, porque quer ver Gautama, o Buda. Não o encontra e grita e sai uma apsara, uma serva, uma donzela que o olha surpreendida. Ele lhe diz: “Sim, busco Sâkyamuni, o Âdi-buddha”. Ela responde: “Mas não sabes o que buscas, o Sâkyamune, o verdadeiro, o Buda, nunca veio aqui e permanecerá ali até que o último ser vivo tenha alcançado o nirvana.” O lugar do Buda é entre os que os sofrem, entre os seres humanos. A grande compaixão que permite ser um bodhisattva faz com que a pessoa se esqueça da sua própria salvação, para colaborar com o resto dos seres vivos na libertação do universo. O voto do bodhisattva, que faz o monge da tradição mâhâyana depois de cinco anos de preparação como mínimo, consiste em renunciar a qualquer benefício e mérito pessoal, em não pensar nisso até que o último ser vivo chegue à plenitude.
E quando uma certa filosofia budista posterior se dedica a construir todo um sistema filosófico, o que quer é desqualificar toda a força da lógica para demonstrar, logicamente, que qualquer construção intelectual destrói a si mesma quando se quer formular. Eis aqui um pouco do espírito do budismo.
Resumamos de novo:
— A superação de qualquer meio como puro instrumento. No caminho já está a meta. Os meios são também o fim. Não há que se projetar nem pelo desejo, nem pelo pensamento fora da realidade que se nos revela no cotidiano: é esse o sentido de refugiar-se no Buda, que já não existe, que talvez só tenha dito que fôssemos luzes para nós mesmos e que buscássemos nossa salvação com diligência.
— A superação de toda extrapolação, no âmbito do real e, portanto, de todo extremismo. Não nos podemos especializar em nada que pertença à unidade do ser humano nem sequer na unidade. É a via média. E esse o sentido de refugiar-se na sangha, na Comunidade. Não nos podemos realizar sozinhos. Caberá à comunidade nos tirar de nosso solipsismo, de nossas ambições irreais e nos humanizar. A sangha é o conjunto de todos os seres vivos, é toda a criação.
— A superação de todo messianismo, de todo desassossego para salvar o universo, de todo egocentrismo que nos desumaniza, que faz com que nos refugiemos na busca da santidade, e que dissipa a felicidade. A dor existe, o mundo não é um paraíso, mas é cumprindo o nosso dever que nos realizamos e descobrimos então que o nós não é um ego egoísta, e sim um lampejo fugaz, porém precioso, de uma luz que nos coube ser por um momento. Esse é o sentido de refugiar-se no dharma, na justiça que nos liberta e que mantém o movimento de toda a existência rumo ao nirvana.