VIDE: MUNDO, COSMOLOGIA
IMAGEM DO MUNDO
A gerações pós-neolíticas, educadas pela teocracia, e impregnadas da mentalidade ontológica própria a esta última, constituíram sua síntese do cosmo por meio de elementos rituais, e estes elementos são os seguintes:
- No princípio das coisas se encontra sempre uma terra santa, no meio do oceano. Esta ilha é ao mesmo tempo uma montanha, que une a terra ao céu; em seu ápice brilha o fogo sacrossanto, substância eterna do universo.
- Encontramos assim no centro e no ponto de partida do mundo — em virtude de considerações não naturistas mas exclusivamente religiosas — os conceitos do fogo, do oceano, da ilha e da Montanha.
- A Montanha comporta dois conjuntos iniciáticos essenciais: em suas entranhas se situa a caverna, no seio da qual se aprofundam os retirantes durante seu período de morte iniciática; em seu ápice, ao redor do fogo divino, se estende o cercado sagrado, constituindo o céu; é aí que se operam a ressurreição e a divinização. Mais tarde, este «mundo subterrâneo» que é a caverna da montanha santa será frequentemente substituído por um campo de iniciação, situado à beira de uma água transcendente (mar, lago, rio); mas a ascese permanecerá fundamentalmente a mesma.
- No cercado divino da montanha, se erguem rochedos, pedras e árvores que possuem caráter sacrossanto (vide Pedras).
- A fonte que borbulha da montanha detém igualmente o caráter divino e criador. É ela que pela via dos córregos e dos rios, originários dela, faz irradiar por toda parte os eflúvios sobrenaturais da elevação sagrada. Sua água contém o mana da água oceânica. É a água da vida.
- Animais transcendentes vivem na caverna e no cume da montanha. Estes animais são homens sacralizados pelos despojos dos animais santos. O réptil se identifica frequentemente com a caverna iniciática, onde opera. — Foi frequentemente uma personalidade feminina (a Mãe Divina neolítica). É ele que engolia e digeria os neófitos a fim de realizar a metamorfose. — É, por outro lado, o pássaro que se confundia com o céu.
- A Ilha-Montanha no meio do oceano é o centro dinâmico de onde se expande, sobre o universo fenomenal, ou universo do espaço-tempo, a energia radiante, substância imortal dos seres.
- O signo cruciforme exprime as relações da matéria mana, ou matéria ultrafísica, com a matéria mecanizada ou matéria visível. Está ligado à divisão quadripartite do espaço.
- O espaço não possuindo ponto de existência objetiva, não importa que ponto da extensão física pode ser identificado pelos ritos à Ilha-Montanha primordial, e se tornar assim o onfalos ou o polo do cosmo, quer dizer o centro fixo onde se irradia a energia da sobre-natureza.
- A concepção de templum, os ritos de orientação, e a liturgia de Circunvolução, tão essenciais nas antiguidade, procedem daí.
- O céu, constituído primitivamente pela abóboda da caverna e o cercado sagrado do ápice da montanha, se prolongará pouco a pouco no empíreo, graças à identificação ritual e ontológica da cúpola da gruta com o domo do céu noturno. — Inversamente, o mundo subterrâneo ou mundo situado de baixo, se complicará e se tornará os infernos. — Haverá assim três estágios no cosmo.
- Visitar o outro mundo consistirá essencialmente em uma descida aos infernos (morte iniciática), seguida de uma ascensão ao céu (ressurreição iniciática). — Na origem não se tratava a princípio de uma visita, mas de uma estadia transformante. Estas descrições do além, com a relação das provações iniciáticas que aí se encontravam ligadas, são a fonte da literatura, e, em primeiro lugar, da epopeia.
- Os iniciadores e os homens sagrados do início se diferenciarão progressivamente uns em deuses celestes‘(cume da montanha e empíreo), outros em deuses infernais (caverna); estes últimos por sua vez se depreciarão ao ranque de demônios.
- Os deuses e os demônios têm assim uma proveniência profundamente iniciática.
- A essência do homem, idêntica àquela do cosmo, será, para todos os povos, o mana, outro nome da energia dinâmica subjacente às aparências fenomenais.
- As noções cosmogônicas capitais serão aquelas que traduzirão os ritos fundamentais celebrados na Ilha Sagrada ou sobre a Montanha Santa. Elas se canalizarão desde então, sempre a esta ideia essencial que o universo das sensações é um universo humano, proveniente da ruptura de uma unidade dinâmica primordial, unidade divina, mal compreendida mais tarde sob a denominação do Caos. O Caos é, em ralidade, a radiância, quer dizer a substância qualitativa, una e terna, dos seres. E aí consolidando e objetivando por seu pensamento, as distinções espaciais e temporais, todas subjetivas, próprias à ação animal, o demiurgo humano não efetuou nenhum progresso em absoluto. Constituiu um universo de regressão, um universo claramente teratológico, a margem do cosmo real; e a meta da iniciação é a extinção deste universo do pecado, ou seja, o fim do mundo” (expressão frequentemente mal compreendido também, como se estivesse em causa uma destruição do verdadeiro cosmo).
- Essas visões iniciáticas de base conduziram por exemplo: a) ao rito, e em seguida, ao mito (pois o mito e sempre a descrição escrupulosa de um rito) da criação do universo fenomenal pelo desmembramento de um ser sobre-humano inicial; — b) ao rito (e ao mito) da criação do homem pela cisão de um ser bissexuado primitivo (o que era ainda uma maneira de indicar o caráter sobre-humano original); c) ao rito (e ao mito) da criação das coisas por separação de um homem e de uma mulher sexualmente acoplados; o acoplamento assinalava que estes dois seres não formavam senão um (unidade que a grande liturgia hierogâmica terá por objeto restaurar); a penetração do phallos na kteis, — um dos símbolos da idade neolítica — era uma maneira alterada de proclamar a ideia da divina androginia inicial; — d) à ideia de reabsorção de todas as coisas no fogo (= energia radiante), ideia que se alinhava ao domínio iniciático, e à produção ontológica, do fogo; — e) à identificação ontológica dos mortos iniciáticos (quer dizer, os retirantes enclausurados na caverna) com os mortos orgânicos, e dos nascidos de novo iniciáticos )ou seja dos novos iniciados) com os recém-nascidos orgânicos.
- Uma ideia marcante das cosmogonias antigas será aquela da decadência progressiva da humanidade, quer dizer do recuo do pensamento e do poder ontológicos, ligados à alta ascese e à cultura do mental. A noção de quatro idades regressivas (os quatro «sois» mexicanos) é de fonte nitidamente teocrática.
- A degenerescência e a esclerose dos ritos iniciáticos conduzirão, na última parte da idade dos metais, às três concepções conexas da transmigração, da metempsicose, e do Karma. — O que se encontra no ponto de partida, é a ideia que uma força dinâmica invisível se escapava do objeto sacrossanto utilizado para a iniciação, — que ela aí retornava quando falecia o beneficiário, — que ela se escapava de novo para criar iniciaticamente outros homens ou animais transcendentes, e assim por diante.