Vamos começar pelo início: a consciência. Ela é o coração de tudo, ou pelo menos o coração do Tantra não dualista da Caxemira. O que é a consciência? Convido-o a dar uma olhada: para onde esse dedo está apontando abaixo?
Se você olhar (e se não olhar, tudo o que vier a seguir será mera tagarelice), sem recorrer às suas memórias ou à sua imaginação, você verá… nada, certo? Nenhuma cor, nenhuma forma, nada, nem a menor partícula de poeira para deter seu olhar. Esse olhar que não vê nada é a consciência. Imensidão lúcida. Sempre presente, mas nunca reconhecida. Por que isso é assim?
Bem, como diz Abhinavagupta, um dos mestres dessa arte de reconhecimento, é o grande mistério (um pouco de sânscrito, a língua sagrada da Índia: mahâ-guhya) e a grande obviedade (mahâ-aguhya), tudo ao mesmo tempo. É evidente porque é a consciência que, neste exato momento, está lendo estas linhas, pensando, refletindo, desejando, reagindo… Enquanto tudo se manifesta por sua luz, a consciência é sua própria luz, como uma lâmpada que não precisa da luz de outra lâmpada para ser luminosa. Entretanto, a consciência também é um mistério, pois não pode ser reduzida a nenhum objeto, nenhuma situação, nenhum pensamento, nenhum conteúdo — nada que ela traga à luz. Ela é sempre envolvente, acolhedora, íntima, mais próxima de nós do que nossas lembranças mais íntimas. Transparente, ela também é transcendente — sempre além daquilo de que tem consciência. Eu vejo este teclado: a consciência do teclado não se reduz ao teclado. O teclado está imbuído de consciência, sim. Mas a consciência não se esgota nesse objeto. Ela vai além dele, sempre, sem esforço. O problema parece ser que, normalmente, só vemos o conteúdo e nunca a luz na qual e graças à qual esse conteúdo se torna visível. O tantra da Caxemira (que não se originou na Caxemira, mas existiu em outros lugares da Índia) depende desse ponto-chave: não mais simplesmente estar ciente disso ou daquilo, mas estar ciente da consciência, consciência simples, consciência imediata, autoconsciência íntima. Essa é a experiência fundamental. Mas o tantra não dualista vai além: a consciência tem o poder de se manifestar livremente como um objeto, como um corpo, como qualquer coisa. Tudo de que temos consciência é a consciência se tornando consciente de si mesma como isso ou aquilo. É isso que precisamos entender, para compreender o corpo e a alma. Mas como essa consciência é soberana, ninguém pode forçá-la a olhar para trás a fim de reconhecer a si mesma. Caro leitor, não há nada que o impeça de voltar sua atenção para… o quê? Um espaço grande e ilimitado, transparente e óbvio, mas sem forma ou cor; um vazio límpido, sem nenhum ponto de apoio, mas um pano de fundo vivo para o afresco do universo. Ninguém pode obrigar o Mestre, ou seja, você, caro leitor:
O Senhor dos deuses se prende e se liberta.
Ele mesmo é o sujeito que experimenta (prazer e dor)
E ele mesmo é o sujeito que percebe (tudo isso).
Portanto, que ele examine a si mesmo!
[Sāraśāstra, citado no autocomentário de Mahārthamañjarī, 19.]