Os insights notavelmente detalhados de Johann Georg Gichtel sobre as trevas e a luz em Deus, os princípios divinos e Sophia levam a uma conclusão: é necessário postular, dentro da Trindade, em uma natureza divina, a polaridade essencial de uma forma negativa e destrutiva e uma força positiva e salvadora. Entretanto, esses dois nós dinâmicos estão em equilíbrio, e sua oposição violenta é a própria garantia de sua manutenção. O tema principal que o Boehmista destaca é que a força negativa não tem independência na natureza eterna. A escuridão não pode ser transformada em mal, porque a luz sempre impede seu transbordamento. Sua ativação, no verdadeiro sentido da palavra, não é possível enquanto o princípio da luz for afirmado. Em outras palavras, o mal não se manifesta na natureza divina.
A meditação não pode parar nesse ponto delicado. Por um lado, a descrição do processo teogônico não está completa: dois temas complementares precisam ser explicados, a queda do anjo mau e a criação do mundo externo. Por outro lado, uma contradição precisa ser resolvida: Deus só pode ser realmente Deus se se manifestar. Em outras palavras, a manifestação não é um defeito, mas sim um passo adiante na economia divina. Mas vimos que a manifestação significa autonomia em relação ao mal. Toda manifestação, toda criação é, de fato, separação; e a separação de princípios leva à revelação da luta desses mesmos princípios. Em resumo, se Deus se manifesta, também deve manifestar o mal. Mas isso é impossível. Como podemos sair desse impasse?
Gichtel aborda essas questões com confiança em suas cartas, pois acredita que tem a resposta na pessoa do diabo. A natureza eterna divina é primeiramente exteriorizada nos anjos. Todos esses anjos vêm de uma única essência, e sua morada é o amor. Um grande texto datado de 13 de março de 1693 contrasta a natureza eterna revelada pela Trindade divina com os anjos, entre os quais distingue três hierarquias, e entre essas três hierarquias, 7 arcanjos, ou Spiritus apocalyptici, que significa os 7 Espíritos presentes diante do trono daquele que era, é e há de vir (Apoc. 1, 4). Entre esses anjos, no entanto, um se destaca dos demais, e uma função específica lhe é atribuída: a destruição da harmonia celestial. Lúcifer deveria ter permanecido sob o controle benéfico do princípio da luz. Mas aqui está, “erguendo-se em fúria”. Não está satisfeito com sua própria condição; quer dominar o amor, não deixá-lo agir. Comete um pecado de orgulho; não quer submeter sua vontade às injunções divinas; quer que seja sua própria vontade. Quer conhecer as forças eternas que movem a natureza divina, um conhecimento que já é um pecado, porque é uma reivindicação de autonomia. As consequências de seu ato são enormes. Como recusa o domínio do princípio da luz, o princípio das trevas nele afirma sua independência. Portanto, Deus não manifesta o mal, mas Lúcifer sim. Coloca sua vontade no fogo da raiva, cai nas trevas, incendeia-se ao acender sua própria vontade. Seu desejo se torna uma fonte de raiva. As duas “ideias”, raiva e amor, agora têm uma existência real como criaturas, mas ainda dentro da natureza eterna, por culpa de Lúcifer. A natureza eterna subitamente dá origem ao que o autor chama de centro da natureza. O Diabo é o verdadeiro revelador e, de certa forma, o verdadeiro criador.
A análise de Johann Georg Gichtel é importante pela força e ousadia com que afirma a independência criativa do poder satânico. Está tão claramente ciente de que o que preocupou Böhme por tanto tempo — a descrição do mundo dos anjos, a sociedade perfeita analisada com grande precisão nos primeiros sete capítulos da Aurora — fica em segundo plano. Lúcifer tem pressa em aparecer, em revelar essa polaridade e a escuridão que não é má até que se manifeste. Da mesma forma, insere a criação do mundo diretamente no relato da queda luciferiana.