Klimov (JBC) – Deus é o abismo…

[…] Boehme havia alcançado um estágio crucial em sua jornada espiritual: as respostas que encontrou selaram a reconciliação da razão e do coração. Finalmente, podia ver despontar a Aurora. E, no entanto, quando a terrível contradição do início foi resolvida, o mistério da coincidentia oppositorum tornou-se mais evidente do que nunca. Para desvendá-lo, Boehme sabia que agora teria de se aventurar longe dos caminhos mais conhecidos, viver ainda mais intensamente, suportar muitos transes, muitas andanças e muito sofrimento. Até então, havia se apoiado na linguagem. Agora estava descobrindo o abismo que existia, nas palavras de Bréhier, “entre a realidade profunda e o que pode ser expresso pela linguagem”1. Sem dúvida, conseguiu lançar luz sobre o processo de criação. Mas a razão para isso estava oculta no “segredo inconcebível” — a fórmula é do pseudo-areopagita — daquele que “possui tudo em si mesmo, em sublime simplicidade, muito longe de qualquer duplicidade, e (…) contém tudo da mesma forma em sua infinidade, simples até o grau supremo”2. A partir do De Tribus Principiis em diante, toda a obra de Boehme — da qual o Mysterium Magnum é o ápice — é essencialmente um relato dos esforços e tentativas do místico para alcançar aquele ponto único sobre o qual Bergson escreveu: “Nesse ponto há (algo) simples, infinitamente simples, tão extraordinariamente simples que o filósofo nunca conseguiu dizer”3 Boehme faria esses esforços com base em uma declaração que, com pequenas variações, pode ser encontrada em todos os seus escritos depois de Aurora: “Quando reflito sobre o que Deus é, é isso que digo: Em comparação com a natureza, é Um e, ao mesmo tempo, o eterno Nada; não tem causa, nem começo, nem lugar, e não possui nada fora de si mesmo; é a vontade daquilo que é sem determinação, é apenas Um em si mesmo; não precisa nem de espaço nem de lugar; gera a si mesmo de eternidade a eternidade; não tem nada como ele mesmo, e não tem nenhum lugar particular onde habita: a sabedoria ou inteligência eterna é sua morada; é a vontade da sabedoria e a sabedoria é sua revelação.” [Mysterium Magnum, I, 2] Deus é o Nada, o eterno Nada. Eckhart, Suso, Tauler — para citar apenas alguns místicos alemães — nos apresentaram fórmulas muito semelhantes, se não semelhantes, e, no mínimo, igualmente ousadas. E Angelus Silesius não hesitou em ir ainda mais longe, chegando ao ponto de introduzir a noção do sobrenatural. Mas Deus também é Tudo. “Tudo e nada”, lemos em O Peregrino Querubínico [Cherubinischer Wandersmam, IV, 38]. Ele é a Totalidade, o Um, o Absoluto. Ele é Tudo porque é Nada, e é Nada porque é Tudo. Ora, esse Nada que coincide com o Tudo não pode obviamente ser uma negação da existência. Deus, disse Suso, é um “nada existente”. Portanto, não se trata de um nada, repita-se, entendido no sentido da negação da existência, mas de um nada que é a origem do ser. O nada é o Um anterior, de certa forma, ao algo. E é por isso que — lembremos essa famosa passagem da quinta Enéada — “na verdade, é inefável; o que quer que se diga, se dirá algo: agora, aquilo que está além de todas as coisas, aquilo que está além da venerável Inteligência, aquilo que está além da verdade que está em todas as coisas, não tem nome; pois esse nome seria algo diferente de si mesmo; não é uma das coisas, e não tem nome porque nada é dito dele como de um sujeito” ((Enn., V, 3, 13, traduzido por Emile Bréhier, Paris, Les belles Lettres, 1956, p. 67). Por outro lado, sabemos que Plotino associava o Uno ao Bem [Cf. Enn., II, 9, 1]. Boehme abundou no mesmo sentido: “Além da natureza e da criatura, Deus não tem nome, mas é chamado apenas de o eterno Bem, o eterno Um, a Indeterminação e o fundamento de todos os seres. Ninguém pode encontrar o lugar onde Ele reside. Além disso, nenhuma criatura pode nomeá-lo exatamente, pois todos os nomes são formados por forças, enquanto o próprio Deus é a origem de todas as forças, sem começo e sem nome. É por isso que disse a Jacó: “Por que me perguntas qual é o meu nome? E ele o abençoou. [Mysterium Magnum, LX, 38] Não devemos nos surpreender, portanto, com o fato de que não podemos “entender o que Deus é, exceto que ele é o abismo (Ungrund) de toda a natureza e de todas as criaturas, o eterno que é encontrado apenas em si mesmo e que não tem forma nem nada” [Mysterium Magnum, LX, 40].

Acabamos de começar a traçar um certo paralelo entre o mestre de Porfírio e Boehme. Devemos ter cuidado para não ir muito longe nesse caminho. Mas não hesitemos em dar um passo adiante. Para o alexandrino, “a mais simples de todas as realidades não pensa em si mesma; se pensasse, seria uma multiplicidade” [Enn., V, 3, 13 (fin). Op. cit., p. 68]. Esse era um ponto que realmente obcecava Boehme. Deus, esse Nada, esse Nada absoluto, esse Ungrund, não pensa em si mesmo. O fato de ele escapar do homem é compreensível. Mas de si mesmo! E esse é o Grande Mistério! Para conhecer a si mesmo, Deus, o Único, se manifesta e se revela. Livremente, é claro, já que nada o determina. Então, por que faz isso? Porque tem uma intuição de si mesmo, ou seja, da sabedoria eterna, que é precisamente “Aquele que é o Todo”. E essa intuição é inseparável da vontade e da alegria: Deus “é a vontade da sabedoria e a sabedoria é a sua revelação” [Mysterium Magnum, I, 2]; “a alegria livre, como sabedoria (…), é una com Deus” [Mysterium Magnum, III, 6].


  1. “L’Idée du néant et le problème de l’origine radicale dans le néo-platonisme grec”, Revue de Métaphysique et de Morale, t. XXVI, n° 4, 1919, p. 475. 

  2. Traité des Noms divins, cap. 5, em Dionysiaca, t. I, Paris, Desclée de Brouwer, 1937, p. 363. 

  3. La Pensée et le mouvant, em Œuvres, Paris, P. U. F., 1959, p. 1347. 

Jacob Boehme