Schuon Nenhuma Iniciativa sem a Verdade

Frithjof Schuon — Nenhuma Iniciativa sem a Verdade
Texto encontrado na Internet, sem referência à fonte nem ao tradutor para português

No começo deste século, praticamente ninguém sabia que o mundo está doente — autores como René Guénon e Ananda Coomaraswamy estavam pregando no deserto —, ao passo que hoje em dia quase todos o sabem. Mas estamos longe de todos conhecerem as raízes do mal e serem capazes de discernir os remédios. Em nossos dias, ouvimos frequentemente que, para lutar contra o materialismo, a tecnocracia e a pseudo-espiritualidade, o que é necessário é uma nova ideologia, capaz de resistir a todas as seduções e a todas as investidas e de galvanizar os de boa-vontade. Ora, a necessidade de uma ideologia, ou o desejo de opor uma ideologia a outra, já é uma admissão de fraqueza, e todas as iniciativas que derivem deste ponto de vista errôneo são falsas e estão fadadas ao fracasso. O que é preciso fazer é rebater ideologias falsas com a verdade que sempre existiu e que nós não poderíamos nunca inventar, dado que ela existe fora de nós e acima de nós. O mundo atual é obcecado pelas tendências para o dinamismo, como se ele fosse um “imperativo categórico” e uma panaceia, e como se o dinamismo pudesse ter um sentido e uma eficácia independentemente da verdade pura e simples.

Nenhum homem de sã consciência poderia ter a intenção de substituir um erro por outro, seja “dinâmico” ou não; antes de falar de poder e eficácia, seria preciso falar da verdade e de nada mais. Uma verdade é eficaz na medida em que a assimilamos; se ela não nos dá a força de que necessitamos, isto prova apenas que nós não a apreendemos. Não é a verdade que tem de ser “dinâmica”, somos nós que temos de ser dinâmicos graças à verdade. O que falta no mundo de hoje é um conhecimento penetrante e globalizante da natureza das coisas; as verdades fundamentais estão sempre acessíveis, mas não poderiam ser impostas àqueles que se recusam a levá-las em consideração.

Desnecessário dizer que o que está em questão aqui não são os dados totalmente exteriores que a ciência experimental pode nos fornecer, mas as realidades com as quais essa ciência não pode lidar, e que nos são transmitidas por canais muito diferentes, especialmente os do simbolismo mitológico e metafísico, para não falar da intuição intelectual, da qual todo homem tem, principialmente, a possibilidade. A linguagem simbólica das grandes religiões da humanidade pode parecer difícil e desconcertante para certas mentes, mas ela é, não obstante, inteligível à luz dos comentários ortodoxos; o simbolismo — há que enfatizar isto — é uma ciência real e rigorosa, e nada é mais aberrante do que acreditar que sua aparente ingenuidade advém de uma mentalidade simplística e “pré-lógica”. Esta ciência, que podemos chamar de “sagrada”, não pode ser adaptada ao método experimental dos modernos; o domínio da revelação, do simbolismo, da pura intelecção, obviamente transcende os planos físico e psíquico e assim está situado além do domínio dos métodos ditos científicos. Se acreditamos que não podemos aceitar a linguagem do simbolismo tradicional porque ela nos parece fantástica e arbitrária, isto apenas mostra que ainda não entendemos essa linguagem e não, certamente, que tenhamos superado seu nível.

É muito conveniente afirmar, como se faz de maneira tão capciosa em nossos dias, que as religiões ficaram comprometidas ao longo dos séculos e que seu papel agora terminou. Quando se sabe em que uma religião realmente consiste, sabe-se também que as religiões não têm como se comprometer e que são independentes de abusos humanos. De fato, nada que o homem faça tem o poder de afetar as doutrinas tradicionais, os símbolos e os ritos, na medida, é claro, em que as ações humanas permaneçam em seu próprio nível e não ataquem as coisas sagradas. O fato de que uma pessoa possa explorar a religião a fim de apoiar interesses nacionais ou particulares de nenhuma maneira afeta a religião como mensagem e patrimônio.

A tradição fala a cada homem a linguagem que ele pode entender, contanto que ele esteja disposto a ouvir; esta reserva é essencial, pois a tradição, repetimos, não pode ir à falência; é antes da falência do homem que se deveria falar, pois foi ele que perdeu a intuição do sobrenatural e o senso do sagrado. O homem se permitiu ser seduzido pelas descobertas e invenções de uma ciência ilegitimamente totalitária; isto é, uma ciência que não reconhece seus próprios limites e que por este motivo não tem consciência do que reside além deles. Fascinado pelos fenômenos científicos, bem como pelas conclusões errôneas que tira deles, o homem terminou por ser submergido por suas próprias criações; ele não está pronto para compreender que uma mensagem tradicional está situada num nível totalmente diferente, nem quão mais real é esse nível. Os homens se permitiram ficar deslumbrados tanto mais facilmente quanto o cientismo lhes dá todas as desculpas que eles querem para justificar seu apego ao mundo das aparências e assim, também, sua fuga diante da presença do Absoluto em qualquer forma.

O humanismo espinozista, deísta e kantiano pretendeu realizar um homem perfeito independentemente das verdades que dão ao fenômeno humano toda a sua significação. Como era obviamente necessário substituir um Deus por outro, esse falso idealismo deu lugar ao abuso de inteligência característico do século XIX, especialmente ao cientismo e, com ele, ao industrialismo; este último, por sua vez, realizou uma nova ideologia, tanto achatada quanto explosiva, o humanismo paradoxalmente desumano que é o marxismo. A contradição interna do marxismo é que ele quer construir uma humanidade perfeita destruindo o homem; o que significa que os militantes ateístas, mais apaixonados do que realistas, querem fazer vista grossa para o fato de que a religião é, por assim dizer, uma questão ecológica. Aceitando que a religião compreende um elemento de “ópio” — não apenas “para o povo” — , este elemento é “ecologicamente” indispensável para o psiquismo humano; de qualquer modo, sua ausência gera abusos incomparavelmente piores que sua presença, pois é melhor ter bons sonhos do que ter pesadelos. Seja como for, só a religião, ou a espiritualidade, oferece aquele significado e aquela felicidade integrais ancorados na natureza deiforme do homem, sem os quais a vida nem é inteligível nem vale a pena ser vivida.

Um argumento fácil contra as religiões é o seguinte: as religiões e as denominações se contradizem umas às outras, portanto não podem estar todas certas; consequentemente, nenhuma delas é verdadeira. É como se alguém dissesse: toda pessoa afirma ser “eu”, portanto não podem estar todas certas; consequentemente, nenhuma delas é “eu”; o que equivale a dizer que há apenas um homem para ver a montanha e que a montanha tem apenas um lado para ser visto. Somente a metafísica tradicional faz justiça ao rigor da objetividade e aos direitos da subjetividade; apenas ela é capaz de explicar a unanimidade das doutrinas sagradas e ao mesmo tempo suas diferenças formais.

“Quando o homem inferior houve falar do Tao, ele ri; não seria o Tao se ele não risse… A auto-evidência do Tao é tomada por escuridão.” Estas palavras de Lao-Tsé são mais atuais do que nunca; sem dúvida, erros e estupidez não podem deixar de existir enquanto sua possibilidade relativa não foi exaurida; mas certamente não serão eles que terão a palavra final.

Um ponto que gostaríamos de enfatizar é o seguinte: as pessoas falam prontamente do dever de se útil à sociedade, mas esquecem-se de perguntar se essa sociedade é útil, isto é, se ela realiza a razão de ser do homem e, portanto, de uma comunidade humana; é claro que se o indivíduo deve ser útil à coletividade, esta deve por sua vez ser útil ao indivíduo. A qualidade humana implica que a coletividade não poderia ser o objetivo e a razão de ser do indivíduo, mas, ao contrário, que é o indivíduo — em sua posição solitária diante do Absoluto e, portanto, pela prática de sua função mais elevada — o objetivo e a razão de ser da coletividade. O homem, seja concebido no plural ou no singular, é como um “fragmento de absolutez” e é feito para o Absoluto; ele não tem outra escolha. O social pode ser definido em termos da verdade, mas a verdade não pode ser definida em termos do social.

Estas considerações nos levam à inutilmente controversa questão do “altruísmo”: há “idealistas”, na Índia como no Ocidente — o que pode ser visto no sentimentalismo de um Vivekananda — que prontamente criticam “aqueles que procuram sua própria salvação” em vez de se preocuparem com a salvação dos outros; uma alternativa absurda, pois das duas uma: ou é possível salvar os outros ou é impossível fazê-lo; se é possível, isto implica que nós primeiro procuramos nossa salvação pessoal, caso contrário salvar os outros é impossível, precisamente; de qualquer modo, não é favor a ninguém ficar apegado aos próprios erros. Aquele que é capaz de se tornar um santo mas negligencia tal possibilidade não pode salvar ninguém; é pura e simples hipocrisia esconder as próprias fraquezas e indiferença por trás de uma capa de boas ações. E outro erro, relacionado ao que acabamos de mencionar, consiste em acreditar que a espiritualidade contemplativa é oposta à ação ou torna o homem incapaz de agir; uma opinião desmentida por todas as Escrituras, particularmente pelo Bhagavad Gita.

Nenhuma iniciativa sem a verdade: este é o primeiro princípio da ação, sem, contudo, ser uma garantia de sucesso. Ainda assim, o homem deve cumprir seu dever sem se perguntar se será vitorioso ou não, pois a fidelidade a princípios tem o seu próprio valor intrínseco, ela traz seu fruto em si mesma e significa ipso facto uma vitória na alma do agente. Estamos na “idade de ferro”, e a vitória exterior pode se dar apenas por meio de uma intervenção divina; não obstante isso, uma atividade lógica e espiritualmente correta pode ter efeitos incalculáveis, e de qualquer modo efeitos parciais, não só fora como dentro de nós.



Frithjof Schuon