Um dos temas dominantes nos escritos de Boehme é a total transcendência de Deus: sua existência fora do tempo e do espaço, inacessível a todo pensamento humano, inefável por qualquer língua humana.
O que resta, então, que possamos conceber? Não resta nada, um nada que Boehme chama de Ungrund, muitas vezes traduzido para o inglês pela palavra Abyss (Abismo), uma profundidade que não tem fim, um nada vazio e sem fundo. Esse conceito é difícil de ser concebido pelas mentes ocidentais, mas é bastante familiar ao pensamento oriental.
O que é, então, esse Vazio? Ele não é absolutamente o “nada”. É o alógico ao qual não se aplicam categorias extraídas do mundo do nome e da forma… Um vedantista diria que o Ser ou Is-ness [alemão: Istigkeit] se aplica a ele mesmo no caso do Vazio . . . mas não é nada conhecido pela experiência finita na forma e, portanto, para aqueles que não têm outra experiência, não é nada (Woodroffe na introdução de Evans Wentz, Tibetan Book of the Dead, xxxvii).
Esse Ungrund só pode ser imaginado e é a imagem primordial da entidade incognoscível que, na sabedoria tradicional, não deve receber um nome, mas só pode ser anunciada como “EU SOU”.
Com a introdução do pronome pessoal, a imaginação deu um grande salto de fé. Para Boehme, esse Vazio, esse abismo escuro, não é estéril e passivo, mas ativo e fértil, possuído por uma energia motivadora e um Desejo (Trieb). Esse desejo é de autoconhecimento e move tanto o conhecedor quanto o conhecido. Embora eles sejam apenas Um, neles aparece a primeira divisão. Pois a natureza essencial da Divindade indeterminada é a liberdade. Portanto, no Ungrund há uma potencialidade infinita em relação a tudo o que está dentro dele: não uma perfeição estática, mas uma perfeição dinâmica sempre crescente, sempre se tornando, não sendo, mas ainda em equilíbrio perfeitamente harmônico. Para Boehme, o Ungrund também é “die ewige Stille”, a quietude eterna.
Uma vez que esse movimento tenha sido revelado à nossa imaginação, podemos então, com a mesma faculdade, traçar seu desenvolvimento. Boehme faz isso em detalhes consideráveis. Do nosso ponto de vista atual, podemos dizer, como Schleiermacher, que os escritos de Boehme são de fato “psicologia esotérica” ou a psicologia das profundezas. Quando Boehme descreve o nascimento de Deus, podemos preferir dizer que ele está descrevendo o nascimento de Deus na alma humana individual. O desejo de Deus e o desejo do homem são um só, um gerando o outro mutuamente. Boehme indica que esse desejo pode ser visto em toda a criação; tudo é movido pelo mesmo impulso à perfeição — a consumação. Esse impulso divino, o fiat de Deus, é para Boehme o Mysterium Magnum, um desejo existente no Coração ou Centro de Deus que precisa receber forma e substância. Voltaremos ao assunto da criação mais tarde, quando considerarmos a Cabala e sua doutrina do Tsim-Tsum.