Do ponto de vista sistêmico, o budismo Hinayana representa um caso extremamente interessante, que será necessário comparar com o de outros sistemas com múltiplas ramificações (ou formação de seitas), como o jainismo, o cristianismo e o islão. Como é óbvio, o conflito doutrinal é uma dimensão fundamental do sistema, e não se deve tentar interpretá-lo em função de variáveis econômicas ou sociopolíticas. Seja qual for a sua natureza, o «programa» religioso precede o «jogo», a atuação ao longo da história, e perpetua-se em termos religiosos; as suas consequências sobre outros sub-sistemas que formam a história são incalculáveis e muito frequentemente inesperadas.
O sistema das seitas do Hinayana é complicado, e faltam-nos vários elos de ligação para o reconstituir. Entretanto, existe uma dicotomia fundamental, tal como nas outras religiões já mencionadas, entre uma tradição «pobre» e uma tradição «rica», entre uma tendência antrópica e uma tendência transcendental. A primeira acentua a dimensão humana do fundador; a segunda, a sua dimensão divina.
O primeiro cisma no budismo tem lugar em Pataliputra, após o segundo Concílio de Vaiçali e antes do reino Açoka. O que está em jogo é a qualidade do arhat, protegido ou exposto à humilhação. Nos cinco pontos controversos, a tradição «rica» defende o carácter falível do arhat, enquanto a tradição «pobre», mais conservadora, quer que o arhat seja perfeito. Quer-se saber se o arhat está ainda sujeito às tentações oníricas, se ele continua a manter resíduos de ignorância, se a sua fé é inabalável, se pode receber ajuda na busca do saber e se pode alcançar a Verdade última com a exclamação «Ah!» As duas partes encontram um compromisso entre os cinco pontos em litígio, mas a comunidade divide-se quanto à questão impossível de resolver da profanação nocturna dos arhats, sustentando a maioria do sarngha (Mahasamghika) que o arhat pode ser seduzido em sonho pelas deusas, enquanto os «Antigos» (Sthaviras, daí Sthaviravadins) se opõem a esta ideia. Doravante, os Sthaviravadins representarão a tendência antrópica e os Mahasatpghikas a tendência transcendental no interior do budismo.
Posteriormente, o conceito de «pessoa» (pudgala) causa uma divisão entre os Sthaviravadins. Qual é a relação desta com os cinco skandhas que compõem o ser humano, a saber, rupa (qualidades comparáveis às «Formas» aristotélicas), vedana (Sensibilidade), samjna (Percepção), samskara (Informação inata) e vijnana (Consciência)? Os Sthaviravadins ortodoxos consideram pudgala uma simples convenção linguística sem nada de real, enquanto os discípulos de Vatsinputra (os Vatsiputriyas) afirmam que o pudgala, sem contudo se identificar com os cincos skandhas, não difere deles; não está nem entre eles nem fora deles. E, no entanto, pudgala é uma quinta-essência que transmigra de corpo em corpo: razão suficiente para os adversários dos Vatsiputriyas os acusarem de terem sub-repticiamente adotado o antigo conceito bramânico de atman (alma) do qual Buda se tinha distanciado.
Cinquenta anos mais tarde, duas novas escolas emergem do tronco do Mahasanghika: os Ekavyavaharikas, que crêem que o Intelecto está por natureza acima de toda a humilhação, e os Gokulikas (nome com muitas variantes), para os quais os cinco skandhas são inexistentes.
É possível que o último édito do imperador Açoka Mauria (237 a. C), cujas simpatias se inclinavam para os Sthaviravadins, faça alusão à expulsão da comunidade dos Antigos de alguns monges que formarão o centro de uma das seitas mais importantes do Hmayana: os Sarvastivadins (de sarvam asti, «tudo é»). Na doutrina Sarvastivada, todos os dharmas ou fenômenos, do passado e do futuro, têm uma existência real. Pelo contrário, os Sthaviravadins ortodoxos afirmavam que nem o passado nem o futuro existem, ao passo que uma nova divisão do mesmo tronco, os Kasypiyas ou Survasakas, acreditava que só existem as ações do passado que ainda não produziram efeitos.
A proliferação de abidarmas (comentários aos sutras) contraditórios fez nascer quatro novas escolas com origem nos Vatsiputriyas: os Dharmottariyas, os Bhadrayaniyas, os Sammitiyas e os Sannagarika. Só o abidarma dos Sammitiyas chegou até nós, considerando o pudgala como um simples conceito.
Foi ainda devido à polêmica sobre o abidarma que se deu a cisão dos Gokulikas e o aparecimento dos Bahusrutiyas, que fazem já a distinção, importante no Mahayana, entre os ensinamentos «terrestres» e os ensinamentos «transcendentais» do Buda, e os Prajnaptivadins (de prajnapti, «conceito»), para os quais toda a existência não é mais do que conceptual.
Mais próximos ainda do que será o Mahayana, os Lokottaras («Transcendentes») destacam-se do tronco do Mahasanghika. Para eles o Buda é transcendente (lokottara), professam uma forma de docetismo. Aliás é notável que o sistema de docetismo búdico coincida quase perfeitamente (excepto mitologias) com este, mais tardio, elaborado entre os cristãos (ou para cristãos).
Seria inútil fazer aqui uma lista de todas as seitas do Hanayana. Mencionemos somente que os Theravadins, que se estabelecem no Sri Lanka a meio do século III a. C. e cujo nome não é senão a forma pali do sánscrito Sthaviravadins, são um ramo dos Vibhajyavadins. É impossível reconstituir totalmente o sistema das escolas: as informações são poucas e contraditórias, faltam muitos elos de ligação. E, no entanto, é possível imaginar que o quadro histórico das seitas se sobrepõe a uma parte da exploração lógica de todos estes «conjuntos de relações» contidos na história de Buda, da comunidade original e da teologia primária do seu ensino. É deste modo que as outras seitas conhecidas ativam as oposições Buda / samgha, sutra / abidarma, transmigração / não-transmigração dos skandhas, etc.
Sejam quais forem as complexas ramificações do sistema, é no entanto possível seguir a lógica das duas direções, a direção antrópica e a direção transcendental. À primeira vista, quando eles declaram que o arhat está acima de toda a humilhação, os Sthaviravadins parecem optar pela segunda tendência. Mas na realidade são os Mahasanghikas que, aceitando o carácter falível do arhat, colocam a humanidade do Buda entre parênteses: o que interessa não é atingir a perfeição por meios humanos; pelo contrário, é ser desde agora e já perfeito. É seguindo esta tendência que se desenvolvem várias escolas do Mahasanghika, das quais brotarão a maior parte das ideias a partir das quais nascerá o Mahayana. [Eliade e Couliano]