“A alma é vosso maior inimigo”1. “Se não tivesse seus empecilhos, quem ousaria dizer “sou eu”2. O eu é a raiz, a árvore e os ramos de todos os males de nossa queda3. “É impossível captar duas vezes a essência de qualquer coisa mortal.. . num único e mesmo instante ela chega e se dissipa”4. Poder-se-ia multiplicar as citações deste gênero. O que menos se sabe, é que muitos naturalistas e psicólogos modernos chegaram às mesmas conclusões.” O naturalista sustenta que os estados e os fatos ditos mentais existem somente onde se encontram certas organizações de coisas físicas… (e) que eles não são apresentados por estas coisas enquanto elas não são assim organizadas. O objeto organizado só faz manifestar as reações de seus componentes… (ele) não é um elemento adicional que. . . dirige. . . as reações de suas partes organizadas”. Até lá, é de modo idêntico que o naturalista e o budista interpretam as reações do “objeto organizado”, mas o primeiro se identifica ao objeto que rege5, enquanto que o budista assegura que não há objeto que eu possa chamar “meu Eu”. Ao contrário, os psicólogos, por uma extrapolação do ego, fazem ainda, como os budistas que encaram a possibilidade de alguma outra coisa que o ego, que pode sofrer uma “beatitude infinita”. “Se constatamos que tudo é fluido… constatar-se-á que a individualidade e a falsidade são apenas uma única e mesma coisa”; donde este corolário como na doutrina do Buda Anatta, que “nós” somos diversos da nossa individualidade. “Nesta individualidade de cada um de nós, este “eu” que é tradicional (isto é, habitual) colocarmos em evidência. . . temos a mãe de todas as ilusões;… o drama desta ilusão da individualidade é que ela conduz ao isolamento, ao temor, à suspeita quase paranoica, a ódios absolutamente inúteis”. “Cada um seria infinitamente mais feliz se aceitasse a perda de seu “eu individual” e, como o diz Buda, não teria mais preocupações com aquilo que não tem realidade”. “Na época do racionalismo científico, que se tornara a psique? A palavra se tornara sinônimo de consciência… não havia psique fora do ego. .. Quando o destino da Europa a fizera participar de uma guerra de quatro anos de um horror sem igual… ninguém compreendeu que o homem europeu estava possuído por alguma coisa que o despojava de seu livre arbítrio.” Mas, além, e acima deste ego, há uma Ipseidade “em torno da qual ele gira, mais ou menos como a terra gira em torno do Sol”; todavia, “desta relação nada não é conhecível intelectualmente, porque nada podemos dizer do conteúdo da Ipseidade”6. Da Ipseidade, que nos diz o Budismo? — “Isso não é meu Eu” (na me so atta); palavra que, com a expressão “não-Ipseidade” (Buda Anatta) servindo para qualificar o mundo e todas as “coisas” (sabbe dhamma anatta)7, está na base da opinião errônea que o budismo “nega (não somente o eu mas também) o Eu”. Mas basta considerar os termos em boa lógica para se perceber que eles implicam a realidade de um -Eu, o qual não é nem uma parte nem a totalidade das “coisas” que se declara não lhe atribuir. Como o diz Santo Tomás de Aquino, “As coisas primárias e simples são definidas por negações: um ponto, por exemplo, se define “o que não tem partes”. Dante faz notar que há “coisas que o nosso intelecto não poderia contemplar… só podemos compreender sua natureza formulando negações a seu respeito”. Era também a atitude da antiga filosofia hindu no seio da qual o budismo nasceu: qualquer coisa que se possa dizer do Eu, não é “assim”. Reconhecer que “nada de verdadeiro poderia ser afirmado a respeito de Deus”, não é certamente negar sua essência!
Quando se insiste na questão “Existe um Eu?” Buda recusa responder sim ou não. Dizer sim seria participar do erro “eternalista”; dizer não, do erro “aniquilacionista” (Anguttara_Nikaya IV, 400-401). Da mesma forma, quando surge a questão do destino no além de um Buda, um Ipseidade, do Homem em Si, ele responde que não se lhe poderia aplicar qualquer dos termos “torna-se” (hoti) ou “não se torna”; nem se torna, nem não se torna; “torna-se ao mesmo tempo que não se torna”. Pois qualquer uma destas proposições implicaria a identificação de Buda com tudo ou parte dos cinco fatores da personalidade; todo porvir implica uma modalidade: ora, Buda é exterior a todo o modo. É preciso notar que a questão está sempre redigida em termos de “porvir”, não de ser. A lógica da linguagem só se aplica às coisas fenomênicas (Digha_Nikaya II, 63): Ora, o Ipseidade não está contaminado por nenhuma destas “coisas”; não há expressões verbais para aquele cujo eu não mais existe; aquele que se “recolheu em si mesmo”8 não mais se encontra em nenhuma categoria (Suttanipata 1074, 1076). Todavia afirma-se ainda que Buda “é” (atthi), se bem que ele não seja visível aqui ou lá”; e nega-se que um Ipseidade “não seja” além da morte. Mas se verdadeiramente não fica absolutamente nada quando o eu não existe mais, somos forçados a nos perguntar de que uma imortalidade poderia ser o atributo? Querer reduzir uma realidade à nulidade do “filho da mulher estéril” só conduz ao absurdo, ou ao ininteligível; aliás Buda, repudiando as doutrinas “aniquilacionistas” que heréticos de seu tempo lhe atribuíam, nega expressamente ter jamais ensinado a destruição de nada de real (sato sattasa = ontos on) (Majjhima_Nikaya I 137, 140). “Bem que existe, diz ele, um não-nascido, não-tornado, não-feito (akatam)9, não composto (asamkhatam)10 e, se não existisse, não haveria evasão possível para o que é nascido, tornado, feito e composto” (isto é, do mundo) (Vd. 80) “Tu és o Conhecedor daquilo que jamais foi feito (akatannu), ó Brahman, tendo conhecido o declínio de todas as coisas compostas”.
[Ananda Coomaraswamy — Pensamento Vivo de Buda]William Law, Hobhouse, p. 219. ↩
Timeu, 28 Anguttara_Nikaya Cf. Crátilo, 440. Plutarco, Moralia 392 B. Para a doutrina budista do “instante” (khana) em que as coisas nascem, amadurecem e chegam ao fim, ver Visuddhimagga I, 239, e os desenvolvimentos da ideia nos textos mahayanicos. ↩
Identificação que volta à proposição animista: “Penso, logo existo”, e implica o conceito ininteligível de um único agente que pode querer coisas contrárias .num único e mesmo momento. Pareceria que, para permanecer lógico, o positivista devesse negar a possibilidade de toda a direção de si mesmo; é talvez o caso. ↩
Os naturalistas e os psicólogos que acabamos de citar são: Dewey, Hooke e Vagel; Charles Peirce, H. S. Sullimam, E. E. Haddley, C. J. Jung. Vê-se que este último, que fala da “necessidade absoluta de dar um passo além da ciência” é metafísico sem o querer. Não damos e”stas citações para provar a exatidão da análise budista, mas com o único intuito que o leitor possa compreender melhor esta última: O provérbio inglês diz: “é comendo o “pudding” que se sabe se ele é bom”. As palavras sublinhadas o são pelo autor da presente obra. ↩
Idêntico àquela do bramismo: “Dos que são mortais não existe o Eu” (anatma hi martyah, SB. II, 2, 2-3). ↩
Atham-gato é um excelente exemplo das numerosas ambiguidades etimológicas apresentadas pelo pali. No caso attham — sânsc. astam, o sentido é aquele de “regressado à casa”; mas no caso atham — sânsc. ar-é preciso entender “tendo realizado seu desígnio, atingido sua finalidade”. Uma ambiguidade dêíte gênero não é um transtorno, uma vez que “recolher-se a si mesmo” e “atingir seu fim” vem a dar no mesmo. ↩
O “mundo não feito” (Brahmaloka) dos Upanixades. ↩
“Incomposto”, isto é, sem origem, desenvolvimento ou mutação (Anguttara_Nikaya I, 152); o Nirvana (MU, 270); o Dhama (5. IV. 359). Por outra parte, os “estados” contemplativos, mesmo os mais elevados, são compostos: e é destes próprios estados sublimes que existe uma “evasão derradeira”. ↩