Voltando aos Upanixades, não creio ser preciso relembrar as passagens já discutidas em meu livro Mephistophéles et l’Androgyne (p. 27-30; na tradução inglesa, p. 16-28), onde a luz é identificada com o ser (atman-Brahman) e a imortalidade. Basta enfatizar o fato de que, no pensamento hindu, há apenas uma maneira concreta (baseada na experiência) de se verificar o que pode ser chamado de “compreensão do Eu” (atman), e essa maneira é a experiência da “luz interior” (antarjyotih; cf. Bril,. Up. 1V.3.7). Essa “compreensão” é inesperada, “como o raio que lampeja subitamente” (Kena IV.4). A compreensão instantânea, lúcida, do ser, é, ao mesmo tempo, uma verdade metafísica; “no relâmpago-verdade” (Kausitaki Brahmana Up. IV.2). Da mesma forma, luzes multicoloridas – chamadas no Svetasvatara Up. (II, 11) “formas preliminares de Brahman” – são percebidas pelos ascéticos e os Togues durante suas meditações (M & A. p. 30-33: na tradução inglesa, p..28-31).
Acredita-se que os deuses são “mais radiantes que o Sol e a Luz”. Toda manifestação do Brahma é marcada “pela luz ascendente e a glória brilhante”. Além disso, o nascimento e a inspiração dos grandes salvadores e sábios, é anunciada pela profusão de luz sobrenatural. Por exemplo, na noite em que Mahavira nasceu, “havia um brilho intenso, divino, sagrado”. E, contudo, particularmente em textos e na iconografia budista que existem em profusão epifanias de luz. Já citei alguns exemplos (M & A p. 36 ss.; na tradução inglesa, p. 33 ss.): por ocasião do nascimento de um buda, cinco luzes cósmicas brilham; e cada buda pode iluminar todo o universo com os cabelos que crescem entre as suas sobrancelhas. Gautama declara que, ao terminar uma exposição, “ele toma-se uma chama”. Quando um buda está em samadhi, “um raio chamado ‘Ornamento da Luz da Gnose’, procedente da sutura na protuberância craniana (usnisa) cintila acima de sua cabeça”. Podem-se citar múltiplos outros exemplos. Imediatamente após alcançar o Nirvana, chamas começam a emergir do corpo de Gavampati, e ele se consome no próprio fogo. Da mesma forma, Ananda se inflama em combustão espontânea e alcança o Nirvana. É óbvio que estamos tratando aqui de uma concepção pan-indiana. Da cabeça dos famosos iogues e contemplativos hindus, uma chama sempre ascende e de seus corpos uma energia ígnea irradia.
Negando a existência do atman como uma entidade espiritual última, irredutível, os budistas explicaram a experiência de uma luminosidade interna própria pela natureza mesma do pensamento puro. Conforme está expresso em Anguttara-nikaya 1.10: “Luminoso é o pensamento, mas por vezes ele é maculado por paixões adventícias”. Desenvolvendo essa passagem, algumas escolas Hinayana afirmam que o pensamento original e naturalmente luminoso (cittam prabhasvaram), mas pode ser maculado (klista) por paixões (klesa) ou liberado delas (vipramukta). As paixões, contudo, não pertencem à natureza original do pensamento, donde ser cónsideradas adventícias (agantuka). Segundo alguns autores Yogacara, “o pensamento luminoso” identifica-se com “o embrião de Tathagata” (Tathagatagarbha). Por exemplo, um sutra citado erra Lankavatara descreve o Tathagatagarbha como “naturalmente luminoso, puro, escondido dentro do corpo de todos os seres”. Discutindo a natureza do Ser (atman), Mahaparinirvana Sutra afirma que “atman é Tathagatagarbha. Todos os seres possuem a natureza de Buddha: isto é atman. Contudo, desde o começo, esse atman está sempre encoberto por várias paixões (klesa); por esse motivo, os seres não conseguem vê-lo”.
Pode-se dizer que, de acordo com essa teoria, a natureza original do homem é a de um ser espiritual luminoso em si (= pensamento, atman), idêntico ao embrião de um buda. A natureza da “realidade”, pensamento e essência de Buda é luz. Pode-se comparar a concepção do embrião de Tathagata, encontrado no interior de todos os corpos, com a antiga série hindu de homologias: divindade–espírito–luz-sêmen.
Ocultismo, bruxaria e correntes culturais, Mircea Eliade