Schuon (EPV) – Introdução

Introdução — tópicos

  • Precisões a respeito da palavra “esoterismo
  • Liberdade do homem e salvação
  • Duas maneiras de ler este livro
  • Porque utilizamos as terminologias sânscrita e árabe
  • O que não é este livro
  • Das duas fontes da certeza e da verdade
  • A intelecção exige a ?
  • A intelecção, em se servindo do raciocínio, se identifica com este último?

Inicialmente, temos de chegar a um consenso quanto ao sentido de “esoterismo”. É do conhecimento de todos que essa palavra designa a priori doutrinas e métodos praticamente secretos, por serem considerados inacessíveis à limitada capacidade humana em geral. Exporemos os motivos pelos quais essa perspectiva é possível, imprescindível mesmo, e extensiva aos diversos aspectos da vida humana, partindo do princípio de que se trata de esoterismo autêntico, e não de contrafações ou distorções que comprometam a palavra ou a própria doutrina, que, muitas vezes, restringem-se a estimular a tendência para a excentricidade. Certamente, todo esoterismo apresenta laivos de heresia, do ponto de vista do exoterismo correspondente. Sendo intrinsecamente ortodoxo — portanto, em consonância apenas com a verdade e o simbolismo tradicional pertinente —, é evidente que tal fato não pode desqualificá-lo. Por certo, o esoterismo mais autêntico pode, eventualmente, afastar-se desse esquema e abranger novos simbolismos, mas, em essência, é impossível ser sincretista. Além disso, nosso interesse pelos esoterismos históricos — tais como o pitagorismo, o Vedanta shivaita, o Zen — é menor do que o interesse pelo esoterismo em si que, com satisfação, denominaríamos sophia perennis, sendo por si mesmo independente das formas particulares por constituir a sua essência.

Poder-se-ia questionar que é contraditório falar em público de coisas tão imprecisas do ponto de vista da inteligibilidade; responderemos, mais uma vez juntamente com os cabalistas, que é preferível a divulgação da sabedoria ao seu esquecimento, isso sem falar no fato de que nos endereçamos apenas aos que nos querem ler e compreender. Vivemos numa época conturbada e insaciável, em que as vantagens da comunicação prevalecem sobre as do segredo; além disso, somente as teses esotéricas podem satisfazer as imperiosas necessidades de causalidade, que são suscitadas pelas posições filosóficas e científicas do mundo moderno. Devemos acrescentar outro fato: nem sempre é por falta de boa vontade que as doutrinas esotéricas não são aceitas como mereceriam; essa falta pode ter causas indesculpáveis ou desculpáveis e, no último caso — em geral uma questão de imaginação —, é compensada por uma atitude espiritual talvez limitada, no entanto, positiva e eficaz. Não temos a intenção de converter aquele que está em paz com Deus, se o está realmente, ou seja, segundo a própria vontade de Deus e com o coração puro; e queremos igualmente frisar que a palavra esoterismo nos sugere muito menos a noção de superioridade intelectual do que a de totalidade da verdade e dos direitos imprescritíveis da inteligência, sempre no plano de uma relação humana — e, portanto, vivida — com o Céu. Em todo caso, a ideia de que o número de esoteristas é reduzido por determinação da inteligência, ou de que os esoteristas de facto são necessariamente dotados, não passa pelo nosso espírito.

Como já observamos mais de uma vez em obras anteriores, parece tornar-se cada vez mais difícil — do ponto de vista da ideologia do “nosso tempo” — admitir não só que determinada religião seja a única verdadeira, mas também que exista uma religião verdadeira, seja qual for; na medida em que cabe às religiões uma parte da responsabilidade quanto a esta situação — em função das limitações humanas —, podemos encontrá-la nos limites de sua cosmologia e de sua escatologia, assim como no seu exclusivismo. As teses religiosas por certo não constituem erros, mas são fragmentos determinados por certa circunstância mental e moral; acaba-se conhecendo o fragmento mas perde-se, ao mesmo tempo, a verdade. Somente o esoterismo pode explicar o fragmento e recuperar a verdade perdida, referindo-se à verdade total, assim como dar respostas que não sejam fragmentárias nem comprometidas de antemão por uma linha confessional. Assim como o racionalismo pode tirar a , o esoterismo pode devolvê-la.

Mas agora precisamos adotar um ponto de vista muito mais geral. Segundo alguns, nenhuma “ideologia” salvou o mundo. Sem nos preocuparmos com as intenções desse termo, respondemos que nenhum sistema espiritual, nenhuma religião teve algum dia essa finalidade, pois trata-se unicamente de fornecer aos homens o meio de salvação — não de salvá-los contra a sua vontade — e, também, de Lhes proporcionar o meio de criação de um ambiente favorável, ou o menos desfavorável possível, para a concretização desse fim. Só podemos salvar os que desejam ser salvos: primeiro, os que se dão conta de que estão prestes a perder-se; e, segundo, os que realmente desejam aceitar o auxilio que lhes oferecemos. O homem, sendo livre, está condenado à liberdade; não foram as verdades e os métodos libertadores que “faliram”, foram os homens que se tornaram “adultos”, por assim dizer. As circunstâncias atenuantes — por um lado, as restrições dos exoterismos face a certas experiências e, por outro, as descobertas científicas, na ausência de capacidade para interpretá-las e integrá-las —, afirmamos, não bastam para desculpar os homens por sua insensibilidade ante as evidências inatas e sempre palpáveis, assim como por se fecharem orgulhosa e puerilmente à Misericórdia. Contudo, a história de uma religião é sempre a história da luta entre um dom divino e a recusa em aceitá-lo, o que explica em parte os exageros compensatórios dos santos. [Schuon – EPV (tr. Setsuko Ono)]

 

Frithjof Schuon