Tr. Antonio Carneiro
Os textos Trika comparam frequentemente a essência divina ao oceano: « Homenagem ao oceano da consciência xivaíta, Essência do Sujeito consciente! » diz um versículo1. E para mostrar como Xiva, unido na beatitude à Energia, se volta em direção ao universo à nascer em um primeiro instante de espera, de expectativa ardente, Somânanda propõe essa imagem: « No momento quando, em uma água tranquila, surge de repente uma violenta agitação, se pode notar um estremecimento imperceptível quando se lança aí uma olhadela, a todo início, e eis a excitação da espera. »2
O desenvolvimento da comparação pode esclarecer os três momentos sucessivos da manifestação, sobre as quais se baseia o Trika.
Às vezes, sob um intenso sol, a luminosa vastidão do oceano, profundamente calmo, se irisa e estremece de repente, a água vibra e crepita de luz (sphurattâ) ao infinito, sob o olhar que se ofusca com esse cintilação perpetuamente renovada.
Assim também, no vazio etéreo da pura Consciência, se delineia a vontade (ou o desejo inicial). Emerge mas não se distingue da Consciência da qual ainda jorra, a tomada de consciência fica co-extensiva à luz e tudo permanece indiviso na Consciência como a água e a luz na superfície do vibrante oceano. É o momento do primeiro olhar que compreende o universo em uma tomada de consciência global e soberana, antes que aparecessem conhecimento nocional e objeto conhecido. Nesse primeiro instante, o universo ainda indistinto do sujeito conhecedor reside em plena interioridade, é o nível do Eu indiferenciado, o lugar da via divina.
Em seguida a superfície do mar ondula, se incha e se escava, a onda se forma, flui e reflui, mas fica indissociável do oceano porque tomada em seu único movimento, um movimento que é percebido como único apesar da multiplicidade das ondulações.
De modo análogo, no segundo momento, sob o impulso do desejo que se designa, a consciência se aflige; procurando a conhecer, ela perde a plenitude indiferenciada do Eu para se apoderar de caracteres distintivos; a energia cognitiva se torna pensamento dualizante, distingue sujeito e objeto, mas é diretamente sobre o pensamento, diretamente sobre a consciência que aparece a forma do objeto e, como a onda e o oceano, sujeito e objeto não têm mais senão um só substrato: o universo é percebido como manifestado mas manifestado interiormente, no único pensamento enquanto impressão de prazer ou de dor. É o segundo momento, é o nível do conhecimento, o lugar da via da energia.
Chega um tempo onde a tempestade revolta o mar, as ondas imensas e violentas rebentam uma à uma, onduladas de espuma, salpicando e tornando a cair, parecendo captar para elas somente toda a força do oceano da qual elas se separam para se abater e vir morrer sobre a orla.
Isso figura o terceiro momento, aquele onde o homem vê o universo como exterior e se prova a si mesmo como isolado, sacudido na crista das ondas ou precipitado em seus caixotes3, desamparado, perdido na multiplicidade e na violência das vagas que lhe escondem a unidade do oceano e sua profundeza apaziguada. Nesse nível, sujeitos e objetos são claramente distintos, o mundo aparece como exterior, como totalmente diferenciado, o objeto rejeitado fora do sujeito e do conhecimento. É o nível do objeto conhecido, o lugar da via da atividade.
Apesar dos aspectos variados de sua superfície, é sempre o oceano que nós contemplamos, e sob as múltiplas modalidades da Consciência a Essência permanece. Para reencontrar a Essência, o indivíduo isolado da Consciência deve reconhecer sua identidade à onda, em seguida ao movimento único do oceano que subtende fluxo e refluxo — seja à energia — e enfim ao mar ilimitado — seja à Consciência indiferenciada.
Se as três energias divinas correspondentes aos momentos sucessivos da manifestação do universo, elas formam, em sentido inverso, três vias principais quando o universo ou a consciência retorna à indiferenciação. Essas vias são então as modalidades do retorno à Consciência, cada uma se servindo da energia que a caracteriza como de um trampolim.
Com a mais elevada das energias, essa da Consciência, não se pode falar de via; trata-se então de pura anupâya, a não-via. Se a energia de felicidade se delineia, o acesso « sem maneira de ser » se reconduz à um simples repouso na beatitude. Se a vontade sobrenada, a via eminente de Xiva se apresenta. Quando a energia de conhecimento domina, a via é dita da energia; e se a atividade se manifesta claramente, é a via do indivíduo4.
No sentido do retorno, as energias se estabelecem uma à uma na Essência divina. Quando as três vias se dissolvem na felicidade, esta atinge sua perfeição e a liberdade inicial é definitivamente recobrada.
A Mahārthamanjarī de Maheśvarānanda com extratos do Parimala. 1968, p. 106 ↩
Śivadŗsti de Somānanda com o comentário de Utpaladeva. Śrinagar 1934, K.S. 54, 13-14. ↩
NT: tipo de onda mais ou menos forte, que forma um arco e arrebenta abruptamente e por inteiro dificultando o banho de mar, a prática do surf etc. (Houaiss, 2001, p.566, sentido 4. Fig. B. infrm.). ↩
Têm-se então em termos sânscritos: citśakti própria à anupâya, não-via no sentido estrito; ānandaśakti, relativa à anupâya, via das mais reduzidas; icchaśākti própria à śāmbhavopāya; jnānaśakti relativa à śāktopāya; kriyāśakti relativa à āņāvo-pāya. ↩