UPANIXADES — KATHA UPANIXADE
O Katha Upanixade deve a sua vasta popularidade ao diálogo entre o jovem Nachiketas e Yama, o deus da Morte. Entre outros assuntos discutem a imortalidade da alma, a preferência entre o bom e o agradável, a impossibilidade de se alcançar Brahman pelos sentidos ou pela razão ou pela sabedoria apenas, e a necessidade da percepção intuitiva ou da realização direta de Deus. Vejamos uma passagem do texto:
Vajasravasa cedeu para fins religiosos todas as suas possessões. Nachiketas era seu filho. O jovem, quando viu desfilar as oferendas, fortaleceu-se com a fé e ponderou… E Nachiketas perguntou ao seu pai para quem o oferecia; repetiu a pergunta pela segunda e terceira vez, até que lhe foi respondido: -‘Ofereço-te à Morte!’
E Nachiketas partiu imediatamente para a vivenda de Yama, o deus da Morte, que estava ausente. Nachiketas esperava pacientemente no átrio da mansão pela volta do Yama, o qual quando regressou e soube que Nachiketas não tinha sido condignamente recebido com a hospitalidade que se deve ao brahamane, disse-lhe: -‘Por teres habitado a minha casa por três noites, ó Brahamane, hóspede reverenciado, saúdo-te. Escolhe, por isso três dádivas, uma por cada noite.’
Nachiketas disse-lhe:
– `Consenti que Gautama, meu pai, fique com o pensamento tranquilo e a mente serena. Consenti que se apazigue a sua ira e que me receba com o coração confiante, já liberto das tuas garras. É a primeira dádiva que escolho’.
Yama replicou:
-‘Ainda antes de seres liberto por mim, o teu pai, Audalaki Aruni, sentir-se-á confortado; o seu sono será confiante e a sua ira desaparecerá ainda antes de te ver liberto das minhas garras’.
Nachiketas disse-lhe:
-‘No Céu, ó Morte, não existes, nem tão pouco a velhice e os seus terrores. Atravessando para além da fome e da sede, como se fossem dois rios, a alma abandona a tristeza e alegra-se no Céu. 6 Morte, tu que estudas esta chama celeste, explica-ma, porque creio. Esses que conquistaram para si o céu ganharam a imortalidade. É a segunda dádiva que escolho’.
Yama explicou-lhe que a chama celeste era a base dos conhecimentos subconscientes “escondidos na caverna do nosso próprio ser”. E sentindo-se muito contente com o entendimento do seu discípulo, Yama prometeu-lhe que daí em diante a chama celeste seria conhecida com o seu nome. E para a sua terceira dádiva Nachiketas pediu-lhe que lhe fosse explicado “esse debate que existe sobre o homem que morre, enquanto uns afirmam que `ele não existe’ outros dizem que `ele existe’.
Então Yama disse-lhe que os próprios deuses tinham já debatido esse ponto, pois não era fácil de se compreender a subtileza da sua lei, e ofereceu-lhe em contrapartida inúmeros filhos e netos que vivessem cem anos cada, elefantes, cavalos e ouro, um reino poderoso e vida por tempo que ele próprio delimitasse, além de todos os prazeres que desejasse da vida terrestre. Nada, porém, convence Nachiketas a abandonar a dádiva que escolheu para si.
Então, Yama disse-lhe com alegria:
-‘O que é bom é bem distinto do agradável, e ambos aprisionam o homem através do seus diversos significados. O homem que escolheu o bem fez uma escolha acertada; mas falha na razão da existência aquele que escolheu o agradável. O sábio escolhe o bom, depois de ponderar na sua escolha, mas o néscio prefere o agradável. Mas tu, ó Nachiketas, meditando no agradável e nas aparências agradáveis não te deixaste prender por elas. Não és desses que se abraçam ao colar das riquezas e por elas se perdem. São muito contrárias e divergentes a ignorância e a sabedoria. Considero-te, Nachiketas, ávido em obter a sapiência e indiferente aos prazeres e à cobiça das riquezas. Esses que vivem na ignorância, julgando-se muito sábios e cultos, correndo atrás disso e daquilo, movimentam-se iludidos, como cegos guiados por um outro cego’. O Upanixade continua a avaliar as diversas atitudes dos homens perante o Transcendente e o Eterno que não veio de parte alguma, não nasce nem morre, nem se transforma em coisa alguma. Se o assassino julga que matou ou o assassinado se julga morto, ambos são falhos de compreensão. Ele não mata nem morre, porque existe sempre uma centelha da Alma Infinita no coração de toda a criatura; ninguém a alcança apenas pela instrução e estudos profundos, a não ser que Deus escolha revelar-se-lhe. E não é, certamente, esse que não cessou de praticar o mal nem esse que não está tranquilo, nem esse que não está calmo, nem esse que não tem a serenidade do espírito que pode atingir o ser Absoluto pela sua inteligência. Compara-se o corpo a uma carruagem e a alma ao seu dono, o intelecto ao cocheiro e o pensamento aos freios, os sentidos aos cavalos e os objetos dos sentidos à extensão do seu âmbito. Os sábios chamam `deleitada’ a alma que harmoniza os sentidos e o pensamento.
Mais alto que os sentidos são os seus (Alma) desígnios; mais alto que o intelecto está a Alma Universal; mais alto que a Alma Universal é o Não-manifestado, e mais alto que o Não-manifestado é o Ser. Nada existe mais alto que o Ser que é o fim da trajetória no seu ponto mais alto, e que é atingido pelos visionários e profetas, senhores dum intelecto subtil e superior. O homem inteligente deve extinguir a fala no pensamento, e o pensamento na Alma Universal, o conhecimento no grande Ser e nisso se deve extinguir a tranquilidade da alma, porque aquele que nasceu por si ordenou as portas do corpo por fora, e é por isso que a alma humana contempla o exterior e não a Alma Universal dentro de si. Dificilmente se encontra o homem ponderado que deseja a imortalidade e contempla Deus no seu íntimo. O resto da humanidade segue infantilmente os desejos e os prazeres, caminhando para o laço que a morte lhes estende. Porém, as almas ponderadas e tranquilas, tendo compreendido a imortalidade não procuram a permanência nos objetos passageiros deste mundo porque existe o eterno no transiente, uma Consciência em consciências múltiplas que sendo uma governa os desejos de muitos. A alma forte e tranquila tendo contemplado Deus no seu íntimo alcança a paz eterna e liberta-se da lei do renascimento, mas aquele que não tem o entendimento é sempre impuro e impensado e ,nunca chega ao fim mas passa pela transmigração. A paz eterna e a integração do homem na Alma Universal alcança-se somente depois da alma abandonar no íntimo do seu coração todos os desejos e elos que a ligam a este mundo. É só então que o mortal alcança a imortalidade. Ainda neste mundo, na sua própria forma, humana o homem alcança Deus e torna-se imortal.
Retirado da tese de doutorado de Selma de Vieira Velho — A Influência da Mitologia Hindu na Literatura Portuguesa dos Séculos XVI e XVII