Denomina-se Revelação Primitiva a comunicação especial que se estabeleceu, desde o início da história humana, entre o homem e a preternatureza. Por preternatureza entendemos o universo transcendente ou dinâmico que forma o substrato das coisas acessíveis a nossos sentidos.
Pode-se conceber esta comunicação de duas maneiras.
A primeira consiste em admitir que o ser humano foi lançado, desde o princípio, no cosmo que temos sob nossos olhos, dito de outro modo no mundo apreendido como físico, por intermédio das sensações, e que Deus lhe desvelou então noções mais elevadas, próprias ao universo da transcendência. O pecado original pôs fim a estes contatos, e nossa espécie foi então reduzida às modalidades empíricas do conhecimento.
A dificuldade é de discernir por qual via, nesta hipótese, se comunicava primitivamente ao homem as ideias que o alçavam acima do mundo apreendido como físico ou espaço-temporal, e o ensinavam sobre o reino divino. Era por intermédio das sensações? ou por meio de intuições místicas, que subtraiam momentaneamente o pensamento ao domínio das percepções sensíveis? A segunda conjectura é, evidentemente, única aceitável. Mas basta dizer então que o meio intuitivo, característico do estado edênico primordial, diferia da ambiência física no seio da qual nos movemos.
Caímos assim na segunda concepção, segundo a qual o homem foi primitivamente posto no cosmo da matéria apreendida diretamente como radiante, em outros termos no universo, extra-espacial e extra-temporal, da energia pura, onde o pensamento não é interrompido pelas impressões dos sentidos e acede ao dinamismo interno dos seres. É a princípio o mesmo mundo que, nos dois casos, se encontra em causa: mas aqui o espírito o conhece em sua essência intrínseca, em lugar de entrevê-lo confusamente através do véu das percepções.
O meio primitivo do homem era então, seguindo esta segunda noção, em todos os respeitos transcendente e divino. A queda original consistiu, em que o pai de ossa espécie, pelo fato que recusou de se integrar no Ser pelo dom total de si, e escolheu por se desenvolver em um domínio aparte, escorregou, ipso facto, da preternatureza para a natureza, quer dizer do universo apreendido como radiante para o mundo apreendido como físico:; ele se rebaixou por aí à visão animal pelas impressões sensíveis, que é de ordem pragmática, e da qual empreendeu fazer uma modalidade cognitiva. O conhecimento humano por sensações tomou nascimento no instante do primeiro pecado, e ele é, para nossa espécie, o castigo contínuo do pecado.
Discerne-se claramente, em consequência, a gravidade catastrófica da falta original, e vê-se de qual maneira ela interrompeu a Revelação Primitiva. O potencial mental do Eu humano bruscamente se arrefeceu. A inteligência não esteve mais em condições de atravessar a bruma das impressões de superfície e de reunir-se ao dinamismo íntimo das coisas. Mesmo em conservando sua inelutável necessidade de abraçar o ser, ela não teve mais o poder de alcançá-lo, e teve que cavar tortuosos caminhos para ele, nos tuneis do mundo mecanizado.
Destas duas maneiras de conceber a Revelação Primitiva, chega-se a fazer do mundo físico a atmosfera primeira e normal do homem; este, ao invés do animal, se encontraria lançado por Deus, antes de qualquer pecado, na matéria espacial e temporal, mas com o desejo de superá-la, a fim de se elevar, graças à ajuda divina, ao nível superior, que é aquele da preternatureza ou sobrenatureza. A segunda, ao contrário, visualiza nosso atual estatuto físico, ou fenomenal, como sendo por essência, um estado de recuo. O ser humano cessa, desde então, de ser um ser normal, em estado regular de ascensão; é, fundamentalmente, um ser teratológico, um verdadeiro monstro cósmico, que, depois de estar elevado muito alto, se precipitou para baixo, e não poderia, dele mesmo, chegar a reascender; é uma criatura em desequilíbrio, e que tateia nas trevas para reencontrar a posição inicial, fora da qual falta oxigênio; é um perdido, atolado, por conta de um cataclismo mental, nas areias movediças da matéria, tornada opaca. Esta matéria ela mesma, dito de outro modo o universo apreendido como espaço-temporal e mecanizado, não poderia além do mais constituir um mundo plenamente divino. Ela é o cosmo de Deus, retocado pela visão e o pensamento de uma criatura decaída, que aí introduz um elemento de não-ser; este elemento se descobre em particular na lei da degradação da energia. A primeira concepção, que mantém, ela, o cosmo fenomenal para sair, tal qual nossos olhos de carne o apreendem da operação divina, e para uma manifestação direta do ser, aparece, neste ponto como em outros, claramente insuficiente.
A segunda concepção nos parece imposta pelos antigos textos que estudamos em outras obras. Só ela faz evidenciar o terrível desastre que foi o pecado original. Só ela explica o homem e a história humana. Só ela permite entender distintamente o ««fim do mundo», que nada mais é que a cessação do universo apreendido como físico e o retorno dos Eu humanos ao estatuto radiante do início. Só ela enfim oferece verdadeiramente uma ideia satisfatória da revelação primitiva, que se apresenta como uma experiência direta feita, pelo homem, do universo transcendente, como uma vida contínua no seio do mundo divino, e como, em seguida, uma prova rigorosa da existência deste mundo, vindo a ser invisível.
Este último ponto é essencial. Atualmente, com efeito, não poderíamos discernir o que é, nele mesmo, o reino de Deus. Não podemos entrevê-lo senão através das imagens provenientes das sensações, imagens que lhe dão um aspecto temporal e espacial, estranho a seus dinamismo eterno. Os privilegiados que fazem, em raros instantes, a experiência estão de acordo em dizer que é impossível dela falar. Esta dificuldade insuperável obriga, por sua vez, a rejeitar a primeira concepção.
O que subsiste todavia da Revelação Primitiva — e isso sem interrupção desde o primeiro homem — é a certeza absoluta que o mundo das percepções recobre um universo sobrenatural, que dele forma o suporte e o princípio. Se, em consequência, não podemos saber o conteúdo preciso da revelação primordial, pelo menos possuímos a garantia que efetivamente existe, subjacente a nosso cosmo apreendido como cosmo físico, um universo radiante cujas leis são totalmente outras, universo que foi originariamente aquele do homem, e que está destinado a voltar a sê-lo se nos reintegramos no super-homem.
A Revelação Primitiva, enquanto magnetiza por aí mesmo, invencivelmente, o Eu humano para a luz do ser, encerrada nas obscuras dobras de impressões transitórias, modelou sempre, e não cessará jamais de modelar, a atividade mais profunda de nossa espécie. Por causa dela, não é possível que o homem se satisfaça com o universo visualizado como sensações: ele busca e buscará sempre superar este domínio movente e superficial, que não pode a princípio compreender senão em fazendo um universo do pensamento puro, quer dizer em se esforçando do reatá-lo ao reino transcendente de onde se exilou.