No início, se é que podemos dizer assim, Deus tem uma intuição de si mesmo e, com base nessa intuição, se definirá de alguma forma. Em contentamento, Boehme deu grande ênfase a isso, porque a inteligência divina não envolve sofrimento: “não tem necessidade de sofrimento para definir sua própria existência, o Todo não tem necessidade do Algo, o Algo é meramente um brinquedo com o qual o Todo se diverte” [Mysterium Magnum, III, 21]. Para Deus, definir a si mesmo significa descobrir o que ele realmente é: Amor.
É uma pena que ainda sejamos “prisioneiros de Babel”, incapazes de romper “a casca das palavras”. Caso contrário, compreenderíamos que “a intuição imotivada e divina se transforma em uma vontade de fogo e vida, de modo que o grande amor e a alegria que se denominam Deus, tornam-se evidentes. Pois se tudo fosse uno, essa unidade não apareceria para ele. Mas, por essa revelação, o Bem eterno é reconhecido e dá um reino de alegria” [Mysterium Magnum, III, 22].
Portanto, vontade e amor andam de mãos dadas. Em si mesma, essa vontade não é “semelhante a nada”. Mas a vontade é “a vontade de algo”. Em outras palavras, Deus quer a si mesmo. Penetrou em si mesmo em um desejo pelo que é, contemplando ou vendo a si mesmo, um desejo no qual reside a sabedoria”. “Pois o Nada tem fome de Algo, e a fome é o desejo, na forma do primeiro Verbum fiat, ou o primeiro fazer, pois o desejo não tem nada que possa fazer ou agarrar. Ele apenas se agarra e dá a si mesmo sua marca, ou seja, coagula, molda e agarra a si mesmo, e aquilo que é sem fundamento é fundado. E dá a si mesmo sombra com atração magnética, de modo que o Nada se preenche e, ainda assim, não permanece nada além do Nada. Sua única propriedade é a obscuridade. Esta é a origem eterna da obscuridade. Pois onde há uma propriedade, já existe algo, e o Algo não é o mesmo que o Nada. Ele dá obscuridade, a menos que seja preenchido com outra coisa (como um brilho). Então ele é luminoso e, ainda assim, permanece uma obscuridade como propriedade.” [Mysterium Magnum, III, 4-5]
O desejo é a mola mestra da vontade, assim como é a mola mestra do amor. Deste ponto de vista, é verdade dizer que “nele está a sabedoria”. Mas, considerado apenas em si mesmo, o desejo é obscuro. Vamos tentar descobrir por quê. O desejo “se origina na vontade da livre alegria, emerge através dessa livre alegria e se torna desejo”, ou seja, torna-se uma propriedade, diferentemente da livre alegria que, “como sabedoria, não é uma propriedade, mas é livre de toda inclinação e é una com Deus, enquanto o desejo é uma propriedade” [Mysterium Magnum, III, 6-7]. Na medida em que é uma propriedade, o desejo tende a qualquer coisa: como o fogo (calor), precisa de algo. Mas, repetindo, tomado em si mesmo, o desejo não tem nada. Portanto, na ausência de “algo”, procura se agarrar a si mesmo. Persegue a si mesmo. É movimento sem a liberdade de não ser movimento. Em suma, embora a vontade divina permaneça sempre absolutamente livre, o desejo determina a si mesmo. E esse determinismo é a sombra que lança sobre si mesmo, a obscuridade que dissipa a alegria livre. Se a liberdade desaparece, então, ipso facto, surge o oposto da alegria: o sofrimento. É por isso que “o desejo, em si mesmo, se transforma em tristeza e dor”; “no desejo obscuro está a origem da inimizade, da tristeza e da dor e a eterna origem da ira de Deus, de todo problema e desagrado”. [Mysterium Magnum, III, 9, 11] Observemos aqui que, mesmo visto por esse ângulo, o desejo está longe de ser negativo. Em primeiro lugar, sendo movimento, é a origem de todo dinamismo. E, como vimos, para Boehme, a vida é essencialmente dinamismo. Seria interessante enfatizar a extrema importância dessa concepção na visão de mundo de nosso místico. Nicolas Berdiaeff não foi o único a apontar que um dos grandes méritos do brilhante sapateiro “é ter introduzido um princípio dinâmico na concepção de Deus, após o domínio da filosofia grega e do escolasticismo medieval com sua concepção estática; ter, em outras palavras, visto uma vida interior em Deus (…)”. [“O Ungrund e a liberdade”].
Em segundo lugar, é porque o desejo tenebroso é a origem eterna das trevas, do sofrimento, etc., que “o reino eterno das delícias conhece a si mesmo, sendo a agudeza da dor uma causa do reino das delícias, e que as trevas são uma revelação da luz, para que a luz possa ser revelada, o que não poderia acontecer na Unidade” [Mysterium Magnum, VI, 12]. Boehme expandiu esse tema longamente. “As trevas são o maior inimigo da luz e, ainda assim, são a causa da revelação da luz. Se não houvesse negritude, a brancura não apareceria; e se não houvesse sofrimento, a alegria também não apareceria.” [Mysterium Magnum, V, 7] Aqui encontramos novamente o raciocínio pelo qual, na época de Aurora, Boehme chegou a justificar a existência do mal. Por outro lado, vamos chamar a atenção para o seguinte fato: as trevas nunca foram criadas. Existem em Deus. É claro que, nele, a luz “engole as trevas, e, no entanto, as trevas realmente habitam na luz” [Mysterium Magnum, X, 7]. Portanto, “não podemos dizer que a luz eterna ou as trevas eternas foram criadas, pois então estariam em um tempo e em um começo apreendidos, o que não é verdade. Pois participam da geração, mas não da sabedoria ou geração do Verbo da Divindade. Sua origem é o desejo do Verbo falante” [Mysterium Magnum, III, 2].