Agora vejamos como nos orientarmos entre todos esses símbolos. Esse é o processo de palingenesia em seu aspecto esotérico, cujo simbolismo geral corresponde bastante ao de várias tradições, especialmente a tradição hindu. O ponto de partida é um “homem negro feito de pecado” que, por meio da regeneração, será transformado em um homem de luz. Gichtel segue o caminho místico, mas não a ponto de ignorar o fato de que a transformação não deve se limitar à “alma” pura, mas também deve penetrar no corpo. Assim, diz: “Nós não recebemos uma nova alma com a Regeneração, mas sim um novo corpo; de modo que não se trata de um novo parto para a alma, mas apenas de uma renovação e conversão, do exterior para o interior, para que possa haver uma renovação da graça à pura divindade”. (“T.P.” cap. III, 25). O homem novo, o homem redimido, é aquele que passará pelos estágios, de um elemento a outro, dentro de seu próprio corpo, sofrendo uma certa transformação até que um novo corpo seja plenamente desenvolvido (III, 24). Esse novo corpo — ressalta Gichtel (III, 5) — “difere do primeiro corpo da mesma forma que o sol brilhante difere da terra escura; e embora resida no corpo antigo, este permanece inconcebível para ele — às vezes, é até insensível a ele”. E mais adiante (III, 13): “Esse corpo vem da Palavra divina, ou da Sophia celestial que aparece, surgindo do sagrado fogo interior do Amor, e que o desejo, ou a fé, torna presente e concebível. E tudo isso é espiritual, mais sutil que o ar, como os raios do sol que penetram em todos os corpos”.
Em outras palavras, é um novo estado de corporeidade que escapa à sensação comum e só é concebível por meio de um novo tipo de sensibilidade despertada pelo fogo iniciático. Tem uma natureza etérea e radiante, ou seja, é livre e ativa, ao contrário do corpo de carne lento e pesado que se oferece a ele (cf. o estado de “porosidade” e o simbolismo do “orvalho da vida” no hermetismo) e por meio do qual aparece, a ponto de tornar certos fenômenos possíveis, como a Transfiguração de Jesus. Não faz sentido enumerar todas as noções que vêm à mente por analogia: a “Veste da Liberdade” gnóstica, o vajrarûpa Mahâyâna (uma forma de incorruptibilidade e relâmpago), o “corpo radiante” de Plotino, o sekhem egípcio e assim por diante. Por outro lado, o que é interessante é que Gichtel reconhece no desenvolvimento de tal corpo a própria essência da obra sagrada: “É somente revestida desse novo hábito que ela (a alma) pode se apresentar diante da Santíssima Trindade e servir ao Deus Santíssimo em espírito e em verdade — seguindo o exemplo de Melquisedeque, ministro do Altíssimo — em homenagem e adoração” (I. 18). A condição para a extração e, em seguida, o desenvolvimento do corpo luminoso é uma iluminação inicial no nível do espírito e do corpo, à qual retornaremos mais tarde — mas esse corpo, por sua vez, constitui a condição sine qua non para a palingenesia integral e a participação efetiva na Divindade1.
O leitor sabe que a alquimia fala de um ouro (☉) que precisa ser imerso em “nossa água” ( ☿ ) para “dissolver-se” (liberar-se), depois “fixar-se” (alcançar a estabilidade iniciática) e produzir Medicina. Talvez também saiba que, no esoterismo hindu, diz-se que o princípio divino no homem (Çiva) deve procurar sua contraparte feminina (Çakti) e unir-se a ela — caso contrário, “permanece incapaz de agir como se fosse um cadáver”. É claro que é a mesma coisa. Sophia, a Virgem, é a nossa água hermética como a “água acima”, superior ao mundo da individuação. É a “água da vida” que a deusa Ishtar, no simbolismo babilônico, vai buscar nas profundezas do “Inferno” para, graças a ela, reviver Tamuz, pois é uma “água de ressurreição”. A pessoa que ela consagra obtém o “segundo nascimento”, ou seja, o “nascimento do alto”, o nascimento na “Terra dos Vivos”2.
Mas, para analisar o processo de palingenesia, precisamos ver como o “corpo natural e escuro” de Gichtel foi produzido e como ele é constituído. Nosso autor segue Boehme de perto, ensinando que a Divindade compreende, por assim dizer, tanto a si mesma quanto seu contrário: ela não é apenas Sim, mas também Não; não apenas Amor, mas também Ira; não apenas Luz, mas também Trevas (Fogo, calor). No início, essas duas potências divinas temperavam, harmonizavam e equilibravam uma à outra (II, 17). Ao “cair”, o homem rompe esse estado, dando preponderância à segunda potência, de modo que ela se desprende e se torna independente. Em vez de ser temperado pela primeira potência, ele se volta contra ela e tenta consumi-la. O Fogo, uma vez separado, torna-se desejo, que com seu calor devora a umidade oleosa, de modo que a luz se apaga e o fogo deixa um depósito negro (II, 50). Assim se produz a separação da matriz de Luz ou Água viva, e a corrupção do corpo luminoso e paradisíaco, substituído no sono pelo corpo negro e terreno. Este último é a sede de um apetite insaciável, da doença e da morte (II, 18); morta interiormente, a alma se tornou o inferno onde a corrupção eterna faz seu trabalho (II, Pref., seção 3).
A referência a Melquisedeque na passagem citada é particularmente interessante porque muitos esoteristas notaram a relação entre essa figura enigmática e a tradição propriamente iniciática — anterior à “religião de Abraão”. [Nota apenas na edição de três volumes. ↩
Essas “águas superiores”, portanto, tinham o mesmo valor simbólico da ambrosia. Macróbio (“In Somn. Scip.”, edição de Eyssenhardt, Leipzig, 1893, p. 531 e seguintes) faz alusão à doutrina dos Mistérios, que fala da natureza mais elevada e mais pura da matéria (hyle) da qual as divindades provinham, que é chamada de ambrósia e diz-se que é a bebida delas. Ao passo que a natureza mais baixa e turva dessa mesma matéria é a bebida dos mortais e é identificada com o rio Letes, ou seja, a bebida do esquecimento (o equivalente ao avidya oriental). ↩