Huxley Contemplação

Aldous Huxley — A Filosofia Perene
Contemplação, Ação e Utilidade Social
Em todas as formulações históricas da Filosofia Perene é axiomático que o fim da vida humana é a contemplação, ou a direta e intuitiva consciência de Deus; que a ação é o meio para aquele fim; que a sociedade é boa, na medida em que torne a contemplação possível aos seus membros; e que a existência, pelo menos, de uma minoria de contemplativos é necessária para o bem-estar de qualquer sociedade. Na filosofia popular do nosso tempo é evidente que a finalidade da vida humana é a ação; que a contemplação (sobretudo nas suas formas inferiores do pensamento discursivo) é o meio para atingir tal fim; que uma sociedade é boa na medida em que as ações dos seus membros contribuam para o progresso da tecnologia e da organização (um progresso que se presume estar casualmente relacionado à evolução ética e cultural); e que a minoria de contemplativos é perfeitamente inútil e até maléfica para a comunidade que os tolera. Falar mais a respeito da moderna Weltanschauung é desnecessário; explicitamente ou por implicação manifesta-se em cada página das seções de anúncios dos jornais e revistas. Os trechos que se seguem foram escolhidos para ilustrar as mais antigas, verdadeiras e menos conhecidas teses da Filosofia Perene.

No Budismo, como na Vedanta e nas mais recentes formas da cristandade, a ação correta é o meio pelo qual a mente é preparada para a contemplação. Os primeiros sete estágios da Senda Óctupla são ativos, são a preparação ética para o conhecimento unitivo do Absoluto. Só os que praticam efetivamente os Quatro Atos Virtuosos, nos quais todas as outras virtudes estão incluídas — ou seja, a substituição do ódio pelo amor, a resignação, “a santa indiferença” ou falta de desejo, a obediência ao dharma ou à Natureza das Coisas — podem esperar alcançar a compreensão libertadora de que samsara e nirvana são unos, de que a alma e todas as outras coisas têm como seu princípio de vida a Luz Inteligível ou o ventre de Buda.

Uma pergunta agora, naturalmente, se apresenta: quem é chamado para essa forma mais alta de prece que é a contemplação? A resposta é simples. Todos são chamados para a contemplação, porque todos são chamados para atingir a libertação, que nada mais é senão o conhecimento que une o conhecedor ao conhecido, isto é, a Base Eterna ou Divindade. Os expoentes orientais da Filosofia Perene, provavelmente, negariam que todos fossem chamados aqui e agora; nesta vida particular, diriam eles, seria por todos os motivos impossível a determinado indivíduo alcançar mais que uma libertação parcial, tal como a sobrevivência pessoal numa espécie de “céu”, do qual pode haver um acesso à total libertação ou um retorno às condições materiais que, como admitem todos os instrutores da vida espiritual, são unicamente propícias ao teste da inteligência cósmica que resulta em iluminação. No Cristianismo ortodoxo, nega-se que a alma individual possa ter mais que uma encarnação, ou que possa fazer qualquer progresso na sua existência póstuma. Se for para o Inferno, ali permanecerá. Se for para o Purgatório, simplesmente expia as más ações do passado, a fim de lhe ser possível a visão beatífica. E quando vai para o Céu, tem tanta visão beatífica quanto lhe permitiu sua conduta durante uma única e breve vida na terra, e eternamente. Concordando com esses postulados, segue-se que, se todos forem chamados para a contemplação, se-lo-ão a partir de certa posição particular na hierarquia do ser, que a natureza, a criação, o livre arbítrio, a graça e a educação conspiraram para conceder-lhes. Nas palavras de um eminente teólogo contemporâneo, Pe. Garrigou-Lagrange, “todas as almas recebem um chamado remoto para a vida mística, e se todos se empenhassem em evitar, tanto quanto possível, não apenas os pecados mortais, mas os veniais, e se fossem, cada um de acordo com sua condição, geralmente dóceis ao Espírito Santo, e se tivessem vivido bastante, chegariam um dia a adquirir a vocação próxima e eficaz para uma alta perfeição, para a chamada vida mística”. Este ponto de vista de que a vida da contemplação mística é a forma adequada e moral do desenvolvimento da “vida interior” de recolhimento e devoção a Deus — é então justificado pelas seguintes considerações: primeiro, o princípio das duas vidas é o mesmo; segundo, é somente na vida de contemplação mística que a vida interior encontra a sua consumação; terceiro, sua finalidade, que é a vida eterna, é a mesma; além disso, só a vida da contemplação mística prepara imediata e perfeitamente para aquela finalidade.

Esta afirmativa de que todos são chamados à contemplação parece entrar em conflito com o que conhecemos sobre as variedades inatas do temperamento e com a doutrina de que há, pelo menos, três vias principais para a libertação — a da ação e da devoção, assim como a do conhecimento. Mas o conflito é mais aparente do que real. Se os caminhos da devoção e da ação conduzem à libertação, é porque conduzem ao caminho do conhecimento. Chega-se à libertação total unicamente através do conhecimento unitivo. Uma alma que não continua nos caminhos da devoção e da ação até a via do conhecimento, não é totalmente libertada, mas alcança, no melhor dos casos, a incompleta salvação no “Céu”. Chegando agora à questão do temperamento, verificamos que, com efeito, alguns indivíduos são naturalmente propensos a dar ênfase a certo ponto doutrinário ou prático, e outros, a vários pontos. Mas, embora tenham nascido devotos, trabalhadores, contemplativos, a verdade é que até os que se encontram nos limites extremos da excentricidade temperamental são capazes de escolher outros caminhos para os quais são naturalmente atraídos. Dados os necessários graus de obediência à diretriz da Luz, o contemplativo inato pode aprender a purificar o coração pelo trabalho e levar sua mente à adoração unidirecional; o devoto e o trabalhador inatos podem aprender a “ficar tranquilos e saber que Eu sou Deus”. Ninguém precisa ser vítima dos seus próprios talentos. Pouco ou muito, deste ou daquele tipo, eles nos são concedidos para que alcancemos um grande fim. Todos temos o poder de optar e aplicá-los bem ou mal — da maneira mais fácil ou da pior, da mais difícil ou da melhor.

Neste ponto vale lembrar que Deus não é, de modo algum, o único objeto possível de contemplação. Há muitos contemplativos, filósofos, estetas e cientistas. A concentração unidirigida naquilo que não for o mais alto poderá ser uma perigosa forma de idolatria. Numa carta a Hooker, Darwin escreveu que “é um mal abominável um homem tornar-se tão absorvido em qualquer assunto como eu estou no meu”. É um mal porque esta fixação pode resultar numa quase total atrofia de todas as áreas da mente, menos uma. Darwin confessa que, na maturidade, jamais pôde sentir qualquer interesse pela poesia, pela arte ou pela religião. Profissionalmente, no tocante a sua especialidade, um homem pode atingir total maturidade. Espiritualmente e algumas vezes até eticamente, em relação a Deus e a seus semelhantes, ele pode ser pouco mais que um feto.

Em casos em que a contemplação unidirigida é Deus, há também o risco de as capacidades não utilizadas da mente se atrofiarem. Os eremitas do Tibete e da Tebaida eram, sem dúvida, unidirigidos, mas com uma unidireção de exclusão e mutilação. Entretanto, se tivessem talvez sido mais verdadeiramente “dóceis ao Espírito Santo”, teriam compreendido que a unidireção de exclusão é o melhor preparo para a unidireção de inclusão — a realização de Deus na plenitude do ser cósmico, assim como nas altitudes interiores da alma individual. Tal como o sábio taoista, eles teriam afinal voltado ao mundo cavalgando sua individualidade regenerada e domada; estariam “comendo e bebendo”, e seriam associados aos “publicanos e pecadores” ou seus equivalentes budistas, “bebedores de vinho e açougueiros”. Para a pessoa plenamente iluminada e totalmente livre, samsara e nirvana, tempo e eternidade, o fenomenal e o Real, são essencialmente unos. Toda sua vida é uma constante e unidirigida contemplação da Divindade através das coisas, da vida, das mentes e eventos do mundo do vir-a-ser. Não há aqui qualquer mutilação da alma, nenhuma atrofia de qualquer poder ou capacidade. Ao contrário, há uma geral intensificação e expansão da consciência, e, ao mesmo tempo, uma extensão e transfiguração. Nenhum santo jamais se lamentou de que a absorção em Deus era um “mal abominável”.

A ação, diz Tomás de Aquino, deve ser algo acrescentado à vida da prece, não algo dela retirado. Uma das razões dessa recomendação é estritamente utilitária; a ação que é “retirada da vida da prece” é a ação não iluminada pelo contato com a Realidade, é a ação não inspirada nem guiada; consequentemente, pode ser ineficaz e até ruinosa. “Os antigos sábios”, dizia Chuang Tzu, “primeiro captavam o Tao para si mesmos, e depois para os outros.” Não devemos tirar o argueiro dos olhos dos outros enquanto a trave dos nossos impede que vejamos o Sol divino e trabalhemos sob sua luz. Falando dos que preferem a ação imediata para conseguirem, através da contemplação, o poder de bem agir, S. João da Cruz pergunta: “O que conseguem eles?” E responde: “Poco mas que nada, y a veces nada, y aun a veces dano.” A receita deve equilibrar a despesa. Isto é necessário não somente no nível econômico, mas também no fisiológico, no intelectual, no ético e no espiritual. Não podemos despender energia física, a menos que armazenemos no corpo combustível sob a forma de alimentos. Não podemos esperar dizer algo que valha a pena, a menos que leiamos e digiramos as declarações dos nossos antepassados. Não podemos agir correta e efetivamente, a menos que tenhamos o hábito de nos tornarmos receptivos às atividades da Divina Natureza das Coisas. Temos de tirar dos bens da eternidade, a fim de que possamos dar os bens do tempo. Mas os bens da eternidade não podem ser obtidos, a não ser que abandonemos um pouco do nosso tempo, a fim de silenciosamente esperá-los. Isto significa que a vida, na qual a despesa ética é equilibrada pela receita espiritual, tem de ser uma vida em que as ações se alternem com o repouso, a palavra com um silêncio alertamente passivo. Otium sanctum quaerit caritas veritatis; negotium justum suscipit necessitas caritatis (“O amor da Verdade busca o santo descanso; a necessidade de amor leva à ação correta.”) Os corpos dos homens e animais são máquinas de movimento alternado, nas quais a tensão é sempre seguida do relaxamento. Até o coração não adormecido repousa entre as batidas. Não há nada na natureza animada que se assemelhe, mesmo remotamente, à maior invenção técnica do homem — a roda de movimento contínuo. (É este fato, sem dúvida, que produz o tédio, o aborrecimento, a apatia dos que, nas modernas fábricas, são forçados a adaptar os seus movimentos físicos e mentais ao movimento circular da velocidade mecânica uniforme.) “O que o homem recebe em contemplação”, diz Eckhart, “derrama em amor.” O bem-intencionado humanista ou o cristão simplesmente muscular que imagine poder obedecer ao segundo dos grandes mandamentos sem perder tempo sequer para pensar como amar a Deus com todo o coração, alma e pensamento, depara com a impossível tarefa de um aguadeiro que, incessantemente, vertesse um vaso nunca preenchido.



Aldous Huxley