alquimia chinesa

VIDE técnicas de longevidade

Certos ritos e mitologias dos metalúrgicos, fundidores e ferreiros foram retomados e reinterpretados pelos alquimistas. As concepções arcaicas relativas ao crescimento dos minerais no “ventre” da Terra, à transformação natural dos metais em ouro, ao valor místico do ouro, assim como ao complexo ritual “ferreiros-confrarias iniciatórias-segredos de ofício”, voltam a ser encontradas na doutrina dos alquimistas.

Os especialistas não estão de acordo sobre as origens da alquimia chinesa; ainda se discutem as datas dos primeiros textos que mencionam operações alquímicas. Tanto na China como em outros países, a alquimia é definida por meio de uma dupla crença: 1) na transmutação dos metais em ouro, e 2) no valor “soteriológico” das operações efetuadas com o objetivo de alcançar esse resultado. As referências precisas a essas duas crenças são atestadas na China desde o século IV a.C. Admite-se, em geral, que Tsu Yen, um contemporâneo de Meneio, é o “fundador” da alquimia. No século II a.C, a relação entre o preparo do ouro alquímico e a obtenção da longevidade-imortalidade é claramente reconhecida por Liu An e por outros autores.

A alquimia chinesa constitui-se como disciplina autônoma, utilizando: 1) os princípios cosmológicos tradicionais; 2) os mitos relacionados com o elixir da imortalidade e os Santos Imortais; 3) as técnicas que visam, ao mesmo tempo, ao prolongamento da vida, à beatitude e à espontaneidade espiritual. Esses três elementos — princípios, mitos e técnicas — pertenciam ao legado cultural da proto-história, e seria um erro acreditar que a data dos primeiros documentos que os atestam nos informe também a sua idade. É evidente a solidariedade entre o “preparo do ouro”, a obtenção da “droga da imortalidade” e a “evocação” dos Imortais: Luan Tai apresenta-se diante do Imperador Wu e afiança-lhe que pode operar esses três milagres, mas só logra “materializar” os Imortais O mágico Li Chao-kiun recomenda ao Imperador Wu da Dinastia Han: “Sacrificai ao forno (tsao) e podereis atrair seres (sobrenaturais); quando os tiverdes feito aparecer, o de cinábrio poderá ser transmudado em ouro amarelo; quando o ouro amarelo tiver sido produzido, com ele podereis fabricar utensílios para comer e beber e então tereis uma longevidade prolongada. Quando a vossa longevidade for prolongada, podereis ver os bem-aventurados (hsien) da ilha P’ong-lai, que se acha no meio dos mares. Quando os tiverdes visto e houverdes executado os sacrifícios fong e chan, já não morrereis.” A busca do elixir estava, portanto, associada à procura das ilhas longínquas e misteriosas onde viviam os “Imortais”: encontrar os Imortais era transcender a condição humana e participar de uma existência atemporal e beatífica.

A pesquisa do ouro envolvia também uma investigação de natureza espiritual. O ouro tinha um caráter imperial: achava-se no “Centro da Terra” e tinha relações místicas com o chüe (rosalgar ou sulfeto), o mercúrio amarelo e a Vida Futura (as “Fontes Amarelas”). É essa a maneira como é apresentado num texto de cerca de 122, o Huai-nan-tzu, onde encontramos atestada também a crença numa metamorfose precipitada dos metais”. O alquimista, portanto, só faz acelerar o crescimento dos metais. Como o seu correspondente ocidental, o alquimista chinês auxilia a obra da Natureza apressando o ritmo do Tempo. O ouro e o jade, por participarem do princípio Yang, preservam os corpos da corrupção. Pela mesma razão, os vasos de ouro alquímico prolongam a vida ao infinito 10°. Segundo uma tradição conservada no Lie Hsien Ch’üan chuan (“As Biografias Completas dos Imortais”), o alquimista Wei Po-yang lograra preparar as “pílulas da imortalidade”: tendo engolido, juntamente com um dos discípulos e com o seu cão, algumas dessas pílulas, deixaram a Terra em carne e osso e foram juntar-se aos outros Imortais.

A homologação tradicional entre o microcosmo e o macrocosmo relacionava os cinco elementos cosmológicos (água, fogo, madeira, ar, terra) com os órgãos do corpo humano: o coração com a essência do fogo, o fígado com a essência da madeira, os pulmões com a essência do ar, os rins com a essência da água, o estômago com a essência da terra. O microcosmo que é o corpo humano acha-se, por sua vez, interpretado em termos alquímicos: “o fogo do coração é vermelho como o cinábrio e a água dos rins é negra como o chumbo” etc.. Por conseguinte, o homem possui, no seu próprio corpo, todos os elementos que constituem o Cosmo e todas as forças vitais que asseguram a sua renovação periódica. Trata-se apenas de reforçar certas essências. Daí a importância do cinábrio, devida menos à sua cor vermelha (cor do sangue, princípio vital) do que ao fato de que, exposto ao fogo, o cinábrio produz o mercúrio. Ele encerra, portanto, o mistério da regeneração pela morte (pois a combustão simboliza a morte). Disso resulta que o cinábrio pode assegurar a regeneração perpétua do corpo humano e, consequentemente, a imortalidade. O grande alquimista Ko Hung (283-343) escreveu que 10 pílulas de uma mistura de cinábrio e mel tomadas durante um ano restituem a cor negra aos cabelos brancos e fazem com que os dentes caídos tornem a nascer; se continuarem a ser ingeridas por período superior a um ano, proporcionam a imortalidade 10S.

No entanto, o cinábrio também pode ser produzido no interior do corpo humano, através sobretudo da destilação do esperma nos “Campos de Cinábrio” (cf. pp. 47-48). Esses Campos de Cinábrio, região secreta do cérebro munida de um “quarto semelhante a uma gruta”, são também conhecidos como K’uen-luen. Ora, K’uen-luen é uma Montanha fabulosa do mar do Ocidente, morada dos Imortais. “Para aí penetrar através da meditação mística, entra-se num estado ‘caótico’ (huen) semelhante ao estado primordial, paradisíaco, ‘inconsciente’ do mundo incriado.”

Convém não nos esquecermos, sobretudo, de dois elementos: 1) a homologação da Montanha mítica K’uen-luen às regiões secretas do cérebro e do ventre; 2) o papel atribuído ao estado “caótico”, que, uma vez alcançado pela meditação, permite o ingresso nos Campos de Cinábrio, tornando assim possível a preparação alquímica do embrião da imortalidade. A Montanha do mar do Ocidente, morada dos Imortais, é uma imagem tradicional e muito antiga do “Mundo em ponto pequeno”, de um Universo em miniatura. A Montanha K’uen-luen tem dois andares, formados por um cone reto sobre o qual se ergue um cone invertido. Em outras palavras, tem a forma de uma cabaça, exatamente como o forno do alquimista e a região secreta do cérebro. Quanto ao estado “caótico” obtido pela meditação e indispensável à operação alquímica, é comparável à matéria prima, a massa confusa da alquimia ocidental. A matéria prima não deve ser entendida apenas como uma estrutura primordial da substância, mas ainda como uma experiência interior do alquimista. A redução da matéria à sua condição primeira de absoluta indiferenciação corresponde, no plano da experiência interior, à regressão ao estágio pré-natal, embrionário. Ora, como vimos, o tema do rejuvenescimento e da longevidade pelo regressus ad uterum constitui um dos primeiros objetivos do taoismo. O método mais frequentemente usado é a “respiração embrionária” (t’ai-si), mas o alquimista consegue ainda retornar ao estágio embrionário através da fusão dos ingredientes no seu forno.

A partir de certa época, a alquimia externa (wai-tan) passa a ser considerada “exotérica” e contrapõe-se à alquimia interna de tipo ioga (nei-tan) que, só ela, é declarada “esotérica”. A nei-tan torna-se esotérica porque o elixir é preparado no próprio corpo do alquimista, por métodos de “fisiologia sutil”, e sem a ajuda de substâncias vegetais ou minerais. Os metais “puros” (ou suas “almas”) são identificados com as diversas partes do corpo, e os processos alquímicos, em vez de serem realizados em laboratório, desenvolvem-se no corpo e na consciência do iniciado. O corpo torna-se o cadinho onde o “puro” mercúrio e o “puro” chumbo, bem como o sêmen virile e o alento, circulam e se fundem.

Ao se combinarem, as forças Yang e Yin geram o “embrião misterioso” (o “elixir da vida”, a “Flor Amarela”), o ser imortal que acabará por evadir-se do corpo através do occipúcio e subir ao Céu (cf. pp. 47-48). A nei-tan pode ser considerada uma técnica análoga à “respiração embrionária”, com a diferença de que os processos são descritos na terminologia da alquimia esotérica. A respiração é homologada ao ato sexual e à obra alquímica — e a mulher é assimilada ao cadinho 10s.

Muitas das ideias e práticas que acabamos de apresentar nas duas últimas seções são encontradas nos textos escritos dos períodos Ch’in e Han em diante (aprox. 221-220 A.D.); isso não implica necessariamente que fossem desconhecidas em épocas anteriores. Pareceu-nos oportuno discuti-las desde já, porque as técnicas de longevidade e, de certa maneira, a alquimia fazem parte integrante do taoismo antigo. Temos de acrescentar que, na época dos Han, Lao-tsé já estava divinizado e que o taoismo, organizado como instituição religiosa independente, havia assumido uma missão messiânica e inspirava movimentos revolucionários. Esses desenvolvimentos mais ou menos inesperados merecerão um estudo no tomo in desta obra (capítulo XXXV). No momento, basta lembrarmos que, já num texto de cerca de 165, Lao-tsé era considerado uma emanação do Caos primordial e assimilado a P’an-ku, o antropomorfo cósmico (§ 129) 109.

Quanto à “religião taoista” (Tao Kiao), foi fundada, por volta do final do século II A.D., por Tchang Tao-ling; depois de haver obtido o elixir da imortalidade, Tchang subiu ao Céu e recebeu o título de “Senhor Celeste” (fien shiti). Instaurou na província de Sseu-tch’uan uma “taocracia”, na qual convergiam os poderes temporal e espiritual. O sucesso da seita muito deve ao talento de curandeiro do seu chefe. Como teremos oportunidade de ver (cf. capítulo XXXV), trata-se, antes, de uma dramaturgia psicossomática, reforçada pelas refeições feitas em comum, quando se compartiam as virtudes do Tao. A cerimônia orgiástica mensal, a “união dos alentos”, colimava o mesmo objetivo (cf. pp. 42-43). Ora, uma esperança similar de regeneração pelo Tao caracteriza outro movimento taoista, a seita de T’ai-p’ing (“A Grande Paz”). Já no século I A.D., o fundador do movimento apresentou ao imperador uma obra de intenção escatológica. O livro, ditado por espíritos, revelava os meios suscetíveis de regenerar a Dinastia Han. Esse reformador inspirado foi executado, mas o seu messianismo continuou a influenciar os fiéis. Em 184, o líder da seita, Chang Chüeh, proclamou a iminência da renovatio e anunciou que o “Céu Azul” devia ser substituído pelo “Céu Amarelo” (por essa razão os fiéis ostentavam turbantes amarelos). A revolta que ele desencadeou quase pôs abaixo a dinastia. Finalmente, a revolta foi sufocada pelas tropas imperiais, mas a febre messiânica prolongou-se por toda a Idade Média. O último líder dos “Turbantes Amarelos” foi executado em 1112. [HCIR]

Alquimia, Mircea Eliade