Buda afirma que ele “nada dissimula” que ele não estabelece uma distinção entre o interior e o exterior, que “sua mão não está fechada” (Digha_Nikaya II, 100). Mas a Lei Eterna e o Nirvana são “não-compostos e por este valor transcendente (param’attha) não existem palavras adequadas: (all’alta fantasia qui manco possa, Dante, Paraíso XXXIII, 742) ; isto será objeto da fé (saddha) do discípulo até que disto ele tenha experiência, até que o conhecimento venha substituir a Fé. “Aquele cujo espírito está abrasado com o desejo do Indizível (anakkliata), esse está liberto de todos os amores, nada contra a corrente (Dhammapada 218). Os Budas só fazem proclamar a Via” (Dhammapada 276). Se pode ter uma salvação pela fé (Suttanipata 1146), é porque “é a fé que conduz o melhor ao conhecimento” (Samyutta_Nikaya IV, 298): crede ut intelligas. Quem diz fé diz autoridade; a autoridade de Buda (mahapadesa) que repousa sobre sua experiência imediata é aquela de suas palavras tais como ele as pronunciou, ou tais como foram narradas pelos monges-mendicantes competentes; neste último caso, elas não somente foram corretamente compreendidas, mas ainda verificadas quanto à sua conformidade com os textos canônicos e a regra. Esta dependência da etapa inicial sobre o que ainda não foi “visto” não é exclusivamente budista e não exige uma particular credulidade. A matéria do ensinamento de Buda é sempre o que ele afirma ter visto e verificado pessoalmente: e isso, ele assegura a seus discípulos que eles também o poderão ver e verificar se eles o seguirem na sua viagem com Brahma. “Os Budas apenas indicam o Caminho; cabe a vós a fatigar-se com a tarefa” (Dhammapada 276) ; o Fim permanece indizível (Dhammapada 218); ele não possui sinal (Samyutta_Nikaya I, 188, Suttanipata 342); é uma gnose que não é comunicável (Anguttara_Nikaya III, 444) ; aqueles que só confiam no que pode ser dito estão ainda sob este jugo da morte (Samyutta_Nikaya I, 11).
Quando se discute a questão da Fé, esquece-se demasiadamente que nosso conhecimento das “coisas”, mesmo as que regem nossos atos mundanos, está na maior parte baseado na autoridade. Pode-se dizer que a maioria de nossas atividades diárias cessaria se deixássemos de acreditar nas palavras daqueles que viram o que ainda não vimos, mas que poderíamos ver fazendo o que eles fizeram, indo onde eles foram: do mesmo modo as atividades do neófito budista terminariam se ele não “acreditasse” nesta finalidade que ele ainda não atingiu. De fato, ele acredita que Buda lhe disse o que é verdadeiro, e age em consequência (Digha_Nikaya II, 93). Somente o Homem Perfeito é “sem fé” pois nele o conhecimento do Não-feito substituiu a Fé (Dhammapada 97) e esta não mais lhe é útil. Para o budista, o Dhamma, a Lex Aeterna, sinônimo da Verdade1 (Samyutta_Nikaya I, 169) é a autoridade suprema, o “Rei dos reis” (Anguttara_Nikaya I, 109; m, 149). É com esta última autoridade, fora do tempo e temporal ao mesmo tempo, transcendente e imanente, que Buda se identifica, identifica a Ipseidade na qual ele se refugiou: “Aquele que vê o Dhamma me vê, aquele que me vê, vê o Dhamma” (Samyutta_Nikaya III, 120; it. qi; Milindapanha 73). Entre as escrituras budistas, uma das mais grandiosas é intitulada o Dhammapada: “as Marcas da Lei”; é um itinerário, um guia para aqueles que “marcham na Via da Lei” (dhammacariyam caranti), a qual é também a “Via de Brahma”, “a viagem com Brahma” (brahmacariyam), “a antiga estrada eme seguiram os Todo-Despertos de outrora”. Os termos budistas para dizer a “vereda” (magga) e a “busca” (gavesana)2 da qual a Ipseidade é o objeto (Vinaya_Pitaka I, 23; Visuddhimagga. 393), indicam implicitamente que é necessário seguir uma pista, mas marcas3, Mas estas pistas terminam quando a margem do Grande Mar é atingida. O monge-mendicante que era até então um discípulo (sekho) é daí por diante um perito (asekho); não está mais sob a direção de um preceptor (Gal. III, 25). A Via prescrita é a do aniquilamento do eu, da virtude, da contemplação; é necessário caminhar sozinho com Brahma; mas uma vez atingido o fim desta longa estrada quer seja neste mundo ou no outro, nada mais resta que o “mergulho” no Imortal, no Nirvana (amat’ogadham, nibban’ogadham), neste oceano insondável que é ao mesmo tempo a imagem do Nirvana, do Dhama e do próprio Buda (Majjhima_Nikaya I, 488, 494; Samyutta_Nikaya IV, 179, 180; v, 47; Milindapanha 319, 346). É uma velha comparação, comum aos Upanixades e ao budismo: quando os rios atingem o mar, perdem nome e forma, só se falar do “mar”. A vocação monástica é já uma prefiguração deste fim; semelhantes aos rios que atingem o mar, os homens de toda a casta que se tornaram monges-mendicantes não mais são designados pelo seu antigo nome ou sua antiga linhagem: pertencem somente à linhagem daqueles que procuraram a Verdade e a encontraram (Dhammapada 239).
“A gota de orvalho desliza para o mar resplandecente”. Sim, mas a fórmula não é exclusivamente budista: nós a encontramos em Rumi (Nicholson, Diwan, XII, XV; Mathnawi, passim), em Dante (sua voluntate..:. è quel maré ai qual tutto si muove (Par. III, 84), em Mestre Eckhart (also sich wandelte der Tropfe in das Meer… “o mar da insondável natureza de Deus: mergulha dentro, é o afogamento”), em Angelus Silesius (wenn Du das Tröpflein weisz im grossen Meere nennen, denn weisz Du meine Seel’im grossen Gott erkennen, Christl. Wandersmann, II 25) e também na China, onde o Tao é o oceano ao qual tudo regressa (Tao-te King, XXXII). De todos os que o atingem pode-se somente dizer que sua vida é oculta, enigmática. Buda, que cada um o pode ver presente em carne e osso é desde agora “impossível de atingir” (anupalabhyamano); não é mais “descobrível” (ananu vejjo); um ser assim “mergulhado em si mesmo” não poderia mais ser relacionado a qualquer categoria (sankham na upeti (Suttanipata, 1074)). Pois, “não há ninguém, que me vendo sob uma forma qualquer, possa me ver”; “nome e aspecto não me pertencem”, “Somente aquele que vê a Lei Eterna, vê Buda, hoje mesmo tão efetivamente que quando o Mestre estava ainda revestido com sua personalidade (persona, máscara, disfarce) que, no momento de sua morte, ele fez estalar como uma cota de malhas” (Anguttara_Nikaya IV. 312).
Acabamos de deixar perceber a identidade do Mar dantesco com o Mar budista, parecendo introduzir uma significação deísta nas doutrinas pretensamente ateias do budismo; bastar-nos-á fazer notar que não existe uma verdadeira distinção a estabelecer entre a imutável Vontade de Deus e a Lex Aeterna, sua Justiça de Sabedoria, esta natureza que é a sua Essência, contra a qual não se poderia agir sem negar a ele mesmo. A Lei, Dhamma, fora sempre um nomen Dei; no budismo a palavra conserva-se sinônima de Brahma. Se Buda se identifica à Lei Eterna, isto significa eme ele não poderia pecar; não está mais “sujeito à Lei”; sendo ele mesmo a Lei, ele só pode agir em conformidade com ela, e entre as interpretações do epíteto “Assim vindo” ou “Descobridor da Verdade”, encontramos esta: “como fala, age”. Mas para aqueles que ainda são viajantes inexperientes, o pecado (adhamma) é muito precisamente um delito contrário à Lei Natural, isto é, a parte da Lei Eterna que determina as responsabilidades e as funções do indivíduo. Em outras palavras, a Lei Eterna tem seu correlativo iminente na “lei pessoal” (sadhama, Suttanipata 299) de cada um, que determina suas inclinações naturais e suas funções próprias (attano kamma = ta eautou prattein); é por cupidez ou por ambição que o indivíduo é tentado a desprezar o horóscopo que normalmente o protege (Suttanipata 314, 315). Notamos isto de passagem, porque é um erro muito difundido crer que Buda “atacava” o sistema das castas. O que ele fazia na realidade, era distinguir aquele que só é brâmane por seu nascimento daquele que é um verdadeiro brâmane por sua gnose, e lembrar que a vocação religiosa está aberta aos homens de qualquer origem (Anguttara_Nikaya III, 214; Samyutta_Nikaya I, 167): ideia que nada tinha de novo. A casta é uma instituição puramente social: ora, Buda se dirigia principalmente àqueles cujas preocupações não são mais sociais: em relação ao chefe de família ele diz que sua enteléquia é a perfeição de seu trabalho (Anguttara_Nikaya III, 363), e somente são condenadas as atividades que prejudicariam a outrem. Os deveres do Soberano são muitas vezes enumerados. O próprio Buda era um personagem real, pois instituiu uma Lei; mas era brâmane por personalidade (Milindapanha 225-227). Os Bramanes só são criticados quando não permanecem à altura de sua antiga norma. Em muitas passagens, “brâmane” é sinônimo de “Arahant”.
Pretendeu-se que o Budismo só conhecia o deus pessoal Brahman, de modo algum a Divindade, Brahma, o que teria sido estranho na índia do século V antes da nossa era, sobretudo num antigo discípulo dos brâmanes, e em textos que contêm tantas reminiscências dos Brahmanas e dos Upanixades. De fato, não se poderia duvidar que na expressão gramaticalmente ambígua brahma-bhuto que define o estado dos totalmente libertos, é Brahma que se deve ler e não Brahman; aquele que está “plenamente desperto”, é Brahma que ele “veio a ser.” E com efeito: 1.° nossa atenção é frequentemente atraída para o conhecimento relativamente limitado de um Brahman; 2.° os Brahmans são (por conseguinte) os discípulos de Buda, não é ele que é discípulo deles (Samyutta_Nikaya I, 141-145; Milindapanha 75-76); 3.° em seus nascimentos anteriores, Buda já tinha sido um Brahman e um Maha Brahman (Anguttara_Nikaya IV, 88-90) ; seria portanto absurdo, na identidade brahma bhuto = buddho (Anguttara_Nikaya v, 226; Dli. III, 84; It. 57, etc.) admitir que brahma = Brahman; 4.° está dito explicitamente que Buda é “bem mais que um Maha Brahman (Dhammapada II, 60). É verdade que os brâmanes, falando a Buda, o chamam frequentemente Brahman (Suttanipata 293, 479, 508), mas nestas passagens Brahman não é o nome do deus, mas, como em sânscrito, a denominação de um verdadeiro e sábio brâmane4 e o equivalente de Arahant (Suttanipata 518, 519). Quanto aos deuses (deva) por exemplo, os Indras, Brahmans e muitas outras deidades menores, ou anjos, não é somente verdade que eles possuem ao menos tanta realidade que os homens, e que Buda, como outros Arahants visitam seus mundos e falam com eles; aliás, Buda é o “o mestre dos deuses bem como dos homens (Samyutta_Nikaya in, 86) ; e o que melhor, em resposta aos seus interrogadores, declara absurda a ideia que “não existe outro mundo” (como o sustentam os adeptos do “nada mais”, que hoje chamaríamos positivistas (Majjhima_Nikaya I, 203)) e a opinião paradoxal que “os deuses não existem” (Majjhima_Nikaya II, 211). Considerando enfim que as mesmas proposições se aplicam ao Eu e a Buda — por exemplo, esta que nem um nem outro podem legitimamente se definir na forma “ou isto, ou aquilo”, não somente a paráfrase de “Buda”, é: aquele cujo Eu é desperto5 (Visuddhimagga, 209; cf. Brhadaranyaka Upanixade, IV, 4, 13); mas não é apenas duvidoso que o Comentador tenha razão ao afirmar que, nestas passagens, o Descobridor da Verdade, o “assim vindo”, é o Eu (Udana 67 com Comentário do Udana III, 40). Buda não é apenas um princípio transcendente — Lei Eterna e Verdade — é também universalmente imanente como Homem neste homem”: pode-se deduzi-lo do epíteto “Todo no interior” (vessantara = sânsc. vicvantara (Majjhima_Nikaya I, 386; It. 32)) que se lhe aplica, como das palavras: “Que aquele que me deseja tratar, trate dos doentes” (Vinaya_Pitaka I, 302) espantosamente análogas às de Cristo: “O que tiverdes feito por um dos menores de estes meus irmãos, te-lo-eis feito por mim”.
[Ananda Coomaraswamy — Pensamento Vivo de Buda]“Uma lei superior a nossos espíritos, chamada Verdade”, Santo Agostinho, De Vera Relia. XXX, Cf. Santo Thomás de Aquino, Sum. Theol. II-I, 91-2. ↩
Cf. a história de Gavesin, p. 69. ↩
Como em Platão, ikneuon, passim; ou em Mestre Eckhart, a alma seguindo a pista de sua presa, o Crito. ↩
No ritual védico, o Brahman é o mais sábio dos quatro oficiantes brâmanes, sua autoridade em todas as questões duvidosas; deduz-se que Brahman é o título mais respeitável que um brâmane possa dar a outro quando a ele se dirige. ↩
Budh’atta buddho, Visuddhimagga 209; ef. Brhadaranyaka Upanixade, IV, 4, 13, pratibunddho atma. O “Eu desperto” será o “Eu que fui submetido à mutação” (bhavit’atta, passim), isto é, o “Eu não nascido (ajata’atta) que não envelhece nem morre” (Dhammapada I, 228; cf. Bhagavad Gita II, 20). ↩