Frithjof Schuon — O Pensamento: Luz e Perversão
Texto recolhido na Internet, sem referência à fonte nem ao tradutor para português
Seria preciso poder restituir à palavra “filosofia” seu significado original: a filosofia — o “amor à sabedoria” — é a ciência de todos os princípios fundamentais; esta ciência opera com a intuição, que “percebe”, e não somente com a razão, que “conclui”. Subjetivamente falando, a essência da filosofia é a certeza; para os modernos, ao contrário, a essência da filosofia é a dúvida: o filósofo deve raciocinar sem nenhuma premissa (voraussetzungsloses Denken), como se esta condição não fosse ela própria uma ideia preconcebida; é a contradição clássica de todo relativismo. Duvida-se de tudo, salvo da dúvida 1.
A solução do problema do conhecimento — se é que há algum problema — não poderia ser esse suicídio intelectual que é a promoção da dúvida; é, ao contrário, o recurso a uma fonte de certeza que transcende o mecanismo mental, e essa fonte — a única que existe — é o puro Intelecto, ou a Inteligência em si. O dito “século das luzes” não lhe suspeitava a existência; tudo o que o Intelecto podia oferecer — de Pitágoras até os escolásticos — não era para os enciclopedistas senão dogmatismo ingênuo, ou mesmo “obscurantismo”. Um tanto paradoxalmente, o culto da razão terminou nesse infra-racionalismo — ou nesse “esoterismo da estupidez” — que é o existencialismo sob todas as suas formas; é substituir ilusoriamente a inteligência pela “existência”.
Outros acreditaram poder substituir a premissa do pensamento por este elemento arbitrário, empírico e totalmente subjetivo que é a “personalidade” do pensador, o que é a própria destruição da noção de verdade; o mesmo valeria renunciar a toda a filosofia. Quanto mais o pensamento quer ser “concreto”, mais ele é perverso; isso começou com o empirismo, primeiro passo em direção ao desmantelamento do espírito; busca-se a originalidade, e pereça a verdade. 2
São os sofistas, com Protágoras à frente, que são os verdadeiros precursores do pensamento moderno; são eles os “pensadores” propriamente ditos, no sentido de que se limitavam a raciocinar e pouco se preocupavam em “perceber” e dar-se conta do que “é”. E foi erroneamente que se viu em Sócrates, Platão e Aristóteles os pais do racionalismo, ou mesmo do pensamento moderno em geral; sem dúvida, eles raciocinam — Sankara e Râmânuja fazem o mesmo —, mas eles nunca disseram que o raciocínio é o alfa e omega da inteligência e da verdade, nem a fortiori que nossas experiências ou nossos gostos determinam o pensamento e têm primazia sobre a intuição intelectual e a lógica, quod absit.
Acima de tudo, a filosofia moderna é a codificação de um defeito adquirido; a atrofia intelectual do homem marcado pela “queda” tinha por consequência uma hipertrofia da inteligência prática, de onde, no fim das contas, a explosão das ciências físicas e o surgimento de pseudo-ciências tais como a psicologia e a sociologia.3
Seja como for, é preciso reconhecer que o racionalismo se beneficia de circunstâncias atenuantes em face da religião, conforme ele se faz porta-voz das necessidades de explicação legítimas que certos dogmas suscitam, ao menos quando são considerados literalmente como o exige a teologia. 4 De maneira totalmente geral, é evidente que um racionalista pode ter razão no plano das observações e das experiências; o homem não é um sistema fechado, ainda que possa se esforçar para sê-lo. Mas, mesmo fora de toda questão de racionalismo e de dogmatismo, não se pode censurar ninguém por se escandalizar com as tolices e os crimes perpetrados em nome da religião, ou mesmo simplesmente pelas antinomias entre os diferentes credos; contudo, como os horrores não são, certamente, apanágio da religião — os pregadores da “deusa razão” dão prova disso —, é preciso que nos limitemos à constatação de que os excessos e os abusos estão na natureza humana. Se é absurdo e chocante que se pretendam justificar crimes em nome do Espírito–Santo, não é menos ilógico e escandaloso que eles sejam perpetrados sob a proteção de um ideal de racionalidade e de justiça.
É preciso levar em conta, aqui, a magia envenenadora do erro, seja num contexto religioso ou num mundano; essa magia pode afetar mesmo homens superiores; errare humanum est. Sem dúvida, “o fim santifica os meios”; mas com a condição de que os meios não aviltem o fim!
O que caracteriza, entre outras coisas, o espírito racionalista, é um senso crítico retrospectivo, não prospectivo; a psicose da “civilização” e do “progresso” dá farto testemunho disso. Evidentemente, o senso crítico é em si mesmo um bem que se impõe, mas ele exige um contexto espiritual que o justifique e lhe dê a devida proporção.
Não há nada de surpreendente em que a estética dos racionalistas só admita a arte da Antiguidade clássica, que de fato inspira a Renascença, depois o mundo dos enciclopedistas, da Revolução Francesa e, bem amplamente, todo o século XIX; ora, essa arte — que, aliás, Platão não apreciava — choca por sua combinação de racionalidade e de paixão sensual: sua arquitetura tem algo de frio e de pobre — espiritualmente falando —, enquanto sua estatuária carece totalmente de transparência metafísica e portanto de profundidade contemplativa. 5 É tudo o que cerebrais inveterados podem desejar.
Um racionalista pode ter razão — o homem não sendo um sistema fechado —, dissemos há pouco. Pode-se encontrar, de fato, na filosofia moderna, visões válidas; o que não impede que seu contexto geral as comprometa e enfraqueça. Assim, o “imperativo categórico” não significa grande coisa da parte de um pensador que nega a metafísica e com ela as causas transcendentes dos princípios morais, e que ignora que a moralidade intrínseca é antes de tudo nossa conformidade com a natureza do Ser.
No que diz respeito aos impasses da teologia — aos quais os descrentes têm o direito de ser sensíveis — devemos recorrer à metafísica a fim de elucidar o fundo do problema. Os aparentes “absurdos” que certas formulações implicam explicam-se antes de tudo pela tendência voluntarista e simplificadora inerente à piedade monoteísta, de onde a priori a redução dos mistérios supremos — procedendo do Princípio divino suprapessoal — ao Princípio divino pessoal. É a distinção entre o Sobre-Ser e o Ser, ou entre a “Divindade” e “Deus” (Gottheit e Gott), em termos eckhartianos; ou ainda, em termos vedantinos: entre o Brahma “supremo” (Para-Brahma) e o Brahma “não-supremo” (Apara-Brahma). Ora, em teologia semítica monoteísta, o Deus pessoal não é concebido como a projeção do Absoluto puro; ao contrário, o Absoluto puro é considerado — à medida que é pressentido — como a Essência desse Absoluto já relativo que é o Deus pessoal; é sempre este que é posto em relevo e que está no centro e no ápice. Resultam daí dificuldades graves do ponto de vista da lógica das coisas, mas “despercebidas” do ponto de vista do temor e do amor de Deus: assim, a Onipossibilidade e a Onipotência pertencem na realidade ao Sobre-Ser; elas só pertencem ao Ser por participação e de maneira relativa e unilateral, o que retira do Princípio-Ser uma certa “responsabilidade” cosmológica.
Falando, há pouco, de aparentes “absurdos” tínhamos em vista sobretudo a ideia de um Deus ao mesmo tempo infinitamente poderoso e infinitamente bom que cria um mundo cheio de imperfeições e de calamidades, incluindo um Inferno eterno; só a metafísica pode resolver esses enigmas que a fé impõe ao crente, e que ele aceita porque ele aceita Deus; não por ingenuidade, mas graças a certo instinto do essencial e do sobrenatural. É precisamente a perda desse instinto que permitiu o surgimento e a difusão do racionalismo; a piedade se enfraquecendo, a impiedade podia afirmar-se. E se, por um lado, o mundo da fé comporta incontestavelmente ingenuidades, por outro lado, o mundo da razão carece totalmente de intuição intelectual e espiritual, o que é bem mais grave; é a perda do sagrado e a morte do espírito.
Em vez de discutir vãmente sobre o que Deus “quer” ou “não quer”, os teólogos respondem habitualmente, e com razão, com uma recusa: quem és, homem, para querer sondar as motivações de teu Criador? Deus é incompreensível, e incompreensíveis são suas vontades; algo que, do ponto de vista da maya terrestre, é a estrita verdade, e a única verdade que a humanidade à qual se dirige a Mensagem religiosa é capaz de assimilar com frutos. Assimilação mais moral que intelectual; não se prega o platonismo aos pecadores em risco de perdição, para os quais a realidade é o mundo “tal como ele é”.
Pode-se ver, por aquilo que acabamos de dizer: nossa intenção não é a de insinuar que a religião deveria ser algo diferente do que ela é. As religiões não tinham escolha: a cisão, no homem comum da “idade de ferro”, entre o intelecto e uma inteligência extravertida e superficial obrigava-as a tratar os adultos como crianças, sob pena de ineficácia psicológica, moral e social. As ideologias profanas, ao contrário, tratam como adultos homens tornados quase irresponsáveis por suas paixões e suas ilusões, o que equivale a dizer que elas os incitam a brincar com fogo; é bem fácil ver os resultados sinistros disso em nossa época. No exoterismo religioso, a eficácia assume por vezes o lugar da verdade, e com razão, dada a natureza dos homens aos quais ele se dirige; em outros termos, para o teólogo voluntarista e moralista, é verdadeiro o que dará bom resultado; para o metafísico nato, ao contrário, é eficaz o que é verdadeiro; “não há direito superior ao da verdade”. Mas nem todo mundo é um “pneumático”, e é preciso equilibrar as sociedades e salvar as almas como for possível.
Por um lado, é evidente que a gnose tem direito à existência; por outro lado, é da mesma forma evidente que os teólogos a veem negativamente. Em primeiro lugar, os partidários da “fé” reduzem a inteligência à razão somente, e depois acusam a inteligência de “orgulho intelectual” — uma contradição in terminis — quando ela segue os imperativos de sua própria natureza. É o inverso do que fazem os racionalistas, que censuram à gnose o substituir a inteligência por um dogmatismo gratuito e uma mística irracional.
Mas os racionalistas e os fideístas não são os únicos adversários da Sophia Perennis: outro opositor — um pouco inesperado — é o que poderíamos chamar de “realizacionismo” ou “extatismo”: a saber, o preconceito místico — bastante difundido na India — que quer que em espiritualidade só a “realização” ou os “estados” tenham valor. Os partidários desta opinião opõem à “vã raciocinação” a “realização concreta” e imaginam muito facilmente que com o êxtase tudo está conquistado; eles esquecem que sem as doutrinas — a começar pelo Vedanta! — eles nem mesmo existiriam; e lhes acontece também perder de vista que uma realização subjetiva — baseada na ideia do “Si” imanente — tem grande necessidade desse elemento objetivo que é a Graça do Deus pessoal, sem esquecer o concurso da Tradição.
Devemos mencionar aqui a existência de falsos mestres que, herdeiros do ocultismo e inspirados pelo “realizacionismo” e pela psicanálise, concentram todos os esforços em inventar fraquezas inverossímeis a fim de poder inventar remédios extravagantes. O que logicamente é surpreendente, é que eles encontrem sempre vítimas, e isso mesmo entre os ditos “intelectuais”; a explicação para isto é que essas novidades vêm preencher um vazio que não deveria jamais ter-se produzido. Em todos esses “métodos”, o ponto de partida é uma falsa imagem do homem; o objetivo dos exercícios sendo a obtenção — à semelhança da “clarividência” de certos ocultistas — de “poderes latentes” ou de uma “personalidade desenvolvida” ou “libertada”. E dado que tal ideal não existe — visto ser imaginária a premissa — o resultado da aventura só pode ser uma perversão; é a contrapartida negativa de um racionalismo supersaturado — explodido em seu extremo limite — a saber, um agnosticismo desprovido de toda imaginação.
Rigorosamente falando, há uma só filosofia, a Sophia Perennis; ela é também — considerada em sua integralidade — a única religião. A Sophia tem duas origens possíveis, uma intemporal e uma temporal: a primeira é “vertical” e descontínua, e a segunda, “horizontal” e contínua; dito de outro modo, a primeira é como a chuva que pode descer do céu a todo momento; a segunda é como um ribeiro que brota de uma fonte. Os dois modos se encontram e se combinam: a Revelação metafísica atualiza 6 a faculdade intelectiva, e esta, uma vez despertada, dá lugar à intelecção espontânea e independente.
A dialética da Sophia Perennis é “descritiva”, não “silogística”, ou seja, as afirmações não são produto de uma “prova” real ou imaginária, ainda que possam utilizar provas — reais, neste caso — a título de “ilustração” e numa preocupação de clareza e de inteligibilidade. Mas a linguagem da Sophia é antes de tudo o simbolismo sob todas as suas formas: assim, a abertura à mensagem dos símbolos é um dom próprio do homem primordial, e de seus herdeiros de todas as épocas; Spiritus ubi vult spirat.
Um dos paradoxos de nossa época é que o esoterismo, discreto pela força das coisas, vê-se na obrigação de afirmar-se à luz do dia, pela simples razão de que não há outro remédio para as confusões de nosso tempo. Pois, como dizem os cabalistas, “mais vale divulgar a Sabedoria do que esquecê-la.”
Para Kant, a intuição intelectual — da qual ele não compreende a primeira palavra — é uma manipulação fraudulenta (Erschleichung), o que lança um descrédito moral sobre toda intelectualidade autêntica. ↩
Não é de filosofia, é de “misosofia” que se deveria falar aqui. Este termo foi aplicado, com razão, a ideólogos paranóicos do século XIX, e o mínimo que se pode dizer é que ele não perdeu nada de sua atualidade. ↩
No século XIX, o desejo de reconciliar a fé e a razão, ou o espírito religioso e a ciência, surgiu sob a forma do ocultismo: fenômeno híbrido que apesar de suas fantasmagorias tinha alguns méritos, nem que fosse por sua oposição ao materialismo e à superficialidade confessional. ↩
Havia “vozes de sabedoria” — não céticas, mas positivas e construtivas — do lado dos próprios crentes, no contexto da escolástica e no da Renascença; e também no da Reforma, entre antigos teósofos, por exemplo. ↩
Há na arte grega dois erros ou duas limitações: a arquitetura exprime o homem raciocinante enquanto procura se opor vitoriosamente à natureza virgem; a estatuária substitui o milagre da beleza profunda e da vida por uma beleza mais ou menos superficial e pelo mármore. ↩
Grafamos a palavra com “c” para indicar que não tem o sentido de “modernizar”, mas o de “passagem da potência ao ato”, que é o sentido do francês “actualiser”. Em português esta acepção não está nos dicionários recentes, nem mesmo no Aulete, mas consta de traduções de certos compêndios filosóficos — como por exemplo o conhecido Curso de Filosofia, de Régis Jolivet -, bem como do dicionário de filosofia de Mário Ferreira dos Santos, autor que a utilizou em seus livros. A noção de “ato”, como se sabe, é clássica na filosofia . (N. do T.) ↩