- Os pilares do Islã
- Das caracteres essenciais do Islã, resumo
- O fundamento da ascensão espiritual, é que Deus é puro Espírito, e que o homem lhe assemelha fundamentalmente pela inteligência
- “Deus nada criou de mais nobre que a inteligência, e sua cólera cai sobre aquele que a despreza”
- “Deus é belo, e ama a beleza”
Os pilares (arkan) do Islã são os seguintes: o testemunho duplo de fé (shahadatan), a prece canônica repetida cinco vezes ao dia (salat), o jejum do Ramadã (siyam, sawn), o dízimo (zakat), a peregrinação (hajj); a estes às vezes se acrescenta a guerra santa (jihad), que tem um caráter mais ou menos acidental, já que depende das circunstâncias1 . Quanto a ablução (wudhu ou ghusl, dependendo das circunstâncias), não é mencionada separadamente por ser uma condição para a prece. Como já foi visto, a shahadah indica, em última análise — e é seu significado mais universal que nos interessa aqui —, o discernimento entre o Real e o irreal, e em seguida, na segunda parte, a união do mundo a Deus, tanto em relação a sua origem como a seu fim, porque considerar as coisas isoladas de Deus já é descrença (nifaq, shirk ou kufr, conforme o caso). A oração integra o homem no ritmo da adoração universal e — através da orientação ritual da prece em direção à Caaba — em sua ordem centrípeta. A ablução que precede a prece faz o homem retornar virtualmente ao estado primordial, e, de certa forma, ao Ser puro. O jejum desliga o homem do fluxo contínuo e dissipador da vida carnal, introduzindo em nosso corpo uma espécie de morte e purificação2 . As esmolas vencem o egoísmo e a avareza e efetivam a solidariedade de todas as criaturas, já que são um jejum da alma, como o jejum propriamente dito é uma esmola do corpo. A peregrinação é uma prefiguração da jornada interior em direção à Caaba do coração e purifica a comunidade, como a circulação do sangue, que passa através do coração, purifica o corpo. Por fim, a guerra santa é — sempre do ponto de vista aqui adotado — uma manifestação externa e coletiva de discernimento entre a verdade e o erro; é como um complemento centrífugo e negativo da peregrinação — complemento e não oposto — porque permanece ligado ao centro e é positiva através de seu conteúdo religioso.
Recapitulemos mais uma vez as características essenciais do Islã, visto a partir do ângulo que nos interessa particularmente aqui. Em condições normais o Islã nos espanta pelo caráter inabalável de sua convicção e pela natureza combativa de sua fé. Esses dois aspectos complementares, um interior e estático, e outro exterior e dinâmico, derivam essencialmente de uma consciência do Absoluto que, de um lado, estabelece uma inacessibilidade à dúvida, e, de outro, repele o erro com violência3 . O Absoluto, ou a consciência do Absoluto, engendra assim na alma as qualidades da rocha e do relâmpago, a primeira representada pela Caaba, que é o centro, e o segundo, pela espada da guerra santa, que marca a periferia. No plano espiritual o Islã enfatiza o conhecimento, por ser o conhecimento que realiza o máximo de unidade, no sentido de que ultrapassa a ilusão da pluralidade e vai além da dualidade do sujeito e objeto. O amor é uma forma e um critério do conhecimento unitivo ou, de outro ponto de vista, um estágio no caminho para ele. No plano mundano o Islã busca o equilíbrio e põe cada coisa em seu devido lugar; além disso, faz uma nítida distinção entre o indivíduo e a comunidade, sem deixar de levar em consideração sua solidariedade recíproca. Al-islam é a condição humana levada ao equilíbrio em função do Absoluto, tanto na alma como na sociedade.
A base da ascensão espiritual é que Deus é puro Espírito e que o homem é semelhante a Ele, fundamentalmente através da inteligência. O homem se dirige a Deus através daquilo que é nele mais conforme a Deus — o intelecto — que é ao mesmo tempo penetração e contemplação e tem como conteúdo “supra-naturalmente natural” o Absoluto, que ilumina e salva. O caráter de um caminho depende de uma definição preliminar particular do homem. Se o homem é definido enquanto paixão, como a perspectiva geral do Cristianismo o faz — embora não haja aqui nenhuma restrição maior —, então o caminho é o sofrimento; se como desejo, então o caminho é a renúncia; se como vontade, então o caminho é o esforço; se como inteligência, o caminho é então o discernimento, a concentração, a contemplação. Isso também poderia ser expresso da seguinte forma: o caminho é tal “na medida em que” — e não “porque” — o homem tem tal natureza. Isso nos permite compreender por que a espiritualidade muçulmana, embora fundamentada no mistério do conhecimento, nem por isso deixa de incluir tanto a renúncia quanto o amor.
O Profeta disse: “Deus não criou nada mais nobre que a inteligência, e Sua ira cai sobre aquele que a despreza”, e disse também: “Deus é belo e ama a beleza”. Esses dois provérbios são característicos do Islã: para ele o mundo é um livro gigantesco cheio de “sinais” (ayat) ou símbolos — elementos de beleza — que falam ao nosso entendimento e são dirigidos “àqueles que compreendem”. O mundo é feito de formas, que são como que fragmentos de uma música celestial que se congelaram; o conhecimento ou a santidade dissolve nosso estado de congelamento e libera a melodia interior4 . Aqui, devemos lembrar o verso do Corão que fala das “pedras de que emanam riachos”, embora haja corações que sejam “mais duros que pedras”, uma passagem que lembra a “água viva” de Cristo e a “fonte de água jorrando para a vida eterna” nos corações dos santos.5
Esses “riachos” ou “água viva” estão além de toda cristalização formal e separadora, pertencem ao domínio da “verdade essencial” (haqiqah) em direção da qual leva o “caminho” (tariqah) — partindo da “estrada comum” (shariah) formada pela Lei geral — e nesse nível a verdade é menos um sistema de conceitos (um sistema além do mais intrinsecamente adequado e indispensável) e mais um “elemento”, como o fogo e a água. E isso nos leva a uma consideração adicional: se há diversas religiões — cada uma, por definição, falando uma linguagem absoluta e, portanto, exclusiva — é porque a diferença entre religiões corresponde exatamente, por analogia, às diferenças entre indivíduos humanos. Em outras palavras, se as religiões são verdadeiras é porque em cada caso Deus é quem falou, e se são diferentes é porque Deus falou em “línguas” diferentes, de acordo com a diversidade dos destinatários. Por fim, se são absolutas e exclusivas, é porque, em cada uma delas, Deus disse “Eu”. Todos sabemos muito bem, e é da ordem natural das coisas, que essa tese não é aceitável ao nível das ortodoxias6 exotéricas, mas é assim no nível da ortodoxia universal, da qual Muhyddin Ibn Arabi, o grande expositor da gnose no Islã, deu testemunho nestes termos: “Meu coração está aberto a todas as formas: é uma pastagem para gazelas (ou seja, estados espirituais), e um claustro para monges cristãos, um templo para os ídolos, a Caaba do peregrino, as tábuas da Tora, e o livro do Corão. Pratico a religião do Amor(NA: Não se trata, aqui, de mahabbah no sentido psicológico ou metodológico, mas de “verdade vivida” ou de “atração divina”. O “amor” se opõe aqui às formas, consideradas “frias” e “mortas”. São Paulo também diz que “A letra mata, mas o espírito vivifica”. “Espírito” e “amor” são, aqui, sinônimos.); em qualquer direção que avancem Suas caravanas7 , a religião do Amor será minha religião e minha fé”.8
NOTAS